segunda-feira, 16 de junho de 2008

ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO!

Foi num domingo a noite.
-Até pr’a semana!Dois beijos na mãe, um abraço ao pai, mais apertado desta vez, um carolo no caçula e, ala, porta fora, atordoado com as saudades que só mataria daí a mais de um ano de distância.
Saltei a meia dúzia de degraus para a rua e, sem revirar o olhar para a moldura da porta onde eu sabia estarem a absorver uma última imagem, entrei no carro que me deu boleia até Mangualde onde apanharia o comboio para uma viagem, cuja incógnita do regresso, esmagaria os meus pais, caso soubessem o meu novo destino. Lágrimas, não; mas um vazio opressivo teimou em me acompanhar toda a viagem. Ficara alguma coisa por fazer, ou, no mínimo, por dizer. Esta injustiça viria a perseguir-me toda a vida.
Aquele
-Até p’ra a semana!
foi a melhor mentira que encontrei para os livrar da dor que eu já sentia há semanas.
Estava mobilizado para Angola e ninguém sabia, excepto uns quantos amigos de peito: a Ivone, o Jorge, o Vítor Cravo e a namorada da ocasião. Não era notícia que agradasse dar, fosse a quem fosse, muito menos à família. Souberam-no através de um postal, enviado do Funchal, onde o Vera Cruz atracou a caminho de Luanda. O que escrevi, que a coragem e o aperto d’alma não dava para mais, foi curto, abreviando, em desenhos de má caligrafia, pressurosos e envergonhados, os dizeres da fuga e do silêncio que há dois dias me consumia
“Vou a caminho de Angola. Depois telefono. Beijos”.
Nunca telefonei.
Aerogramava, como todos, e, sempre em curtas, evasivas e saudosas mensagens.
A folia contínua no barco não permitia que as ideias fluíssem com serenidade, comendo-nos o raciocínio e fazendo pairar, sobre todos nós, a dose de inconsciência necessária ao sonho de aventuras heróicas numa terra e numa guerra de que apenas conhecíamos o nome. Neste vazio doce e involuntário, ocupava-se o tempo com coisas para encher coisa nenhuma: a viagem de barco (como vomitei durante dia e meio!), o tempo passado na jogatina da lerpa (jogo oficial dos militares no Ultramar), os copos (que iam diluindo, tal como a distância, a temporã saudade dos mais próximos), a euforia juvenil do guerrilheiro (que escondia mágoas à espera do tempo de carpir), as caras dos militares da 3441 em rápido processo de conhecimento (e que durante dois anos seriam a nossa família mais chegada), a expectativa de ver África pela primeira vez (cheia de perigos das doenças tropicais, feras e terroristas, pensávamos nós) e o medo do desconhecido. E logo ali se foram definindo e forjando as amizades sólidas, que o futuro veio a confirmar, nos palpites de ocasião sobre a compra, naquele supermercado ambulante, de máquinas fotográficas Cannon, relógios Orient e outros artigos “livres de impostos”, com que os Sargentos da Marinha nos comiam os últimos escudos do subsídio de mobilização (7.000 escudos, que fortuna, naquele tempo!).
E, assim, naquele balouçar de sonolência e enjoo, e, na visão surpreendente do voo dos peixes voadores, que planavam umas dezenas de metros acompanhando a linha d’água roubando a glória às gaivotas e albatrozes, se foram encurtando as milhas que nos aproximavam do destino.
Luanda, a Baía de Luanda, apareceu difusamente no horizonte e uma curiosidade quase sobrenatural cometeu o milagre de silenciar centenas de bocas e paralisar os gestos dolentes, aferroados pelo calor tropical, trazendo-nos à realidade e ao receio de, finalmente, a grande aventura das nossas vidas, começar a delinear-se naquelas curvas suaves da terra que se avistava ao longe e que crescia lentamente aos nossos olhos.
Atracámos, carregados de sacos e recordações. Desfilámos, inchados de coragem e escondendo os receios que nos assaltavam em catadupa. Encomboiaram-nos para o Grafanil e tudo foi novidade, para mim, na mais pequena e espantosa viajem da minha vida: os miúdos, milhares, numa infindável corrente humana que corria ao longo da linha gritando, para estupor de todos nós; aquele calor abafado e húmido que nos enchia o peito e secava a boca; a cor barrenta da terra e o cheiro forte e adocicado do ar, criando novas sensações olfactivas ainda hoje presentes e reconhecíveis nos sonhos em que viajo pelo passado. Esta marca, a primeira verdadeiramente africana, colou-se, até hoje á minha pele e permanece, violenta e real, em todos os dias da minha vida.
Ensanduichados nas barracas de campanha, distribuíram-nos as G-3 (o lema era: come com ela, dorme com ela, e, se fores às putas, leva-a contigo, porque sempre atacas com duas armas!) justificando, assim, a nossa mobilização para esta campanha guerreira.
Numa coluna gigante, formada por camiões de gado, nos quais nós fazíamos do dito, galgámos quilómetros a caminho de Nova Lisboa, tendo, como destino final, o Kuando-Kubango, Leste de Angola.
Vinte e cinco tostões, dois e quinhentos, custaram os abacaxis que alambazámos pelo caminho, fazendo companhia e complemento às rações de combate com que nos haviam despachado para esta viagem, ao quase interior de Angola e que terminaria na cidade do Luso, após uma memorável e nunca olvidada viagem por caminho de ferro, numa composição com mais de quinhentos metros de comprimento puxada por duas locomotivas a vapor, uma à frente e outra à retaguarda, antecedidas por um vagão rebenta-minas.
Angola, ia-nos comendo a alma com novos medos até aí desconhecidos. Travávamos conhecimento com dimensões e sentimentos fora dos nossos parâmetros cognitivos: aquelas terras sem fim e a perder de vista, as florestas intermináveis e densas, as distâncias, que o cansaço tornava maiores, as conversas em surdina sobre coisas até aí nunca faladas, as justificações e razões díspares, cautelosas, mas já tardias. Ao fundo do túnel das nossas vidas neste novo mundo, o vazio do futuro, esse buraco nunca tapado e sempre presente.
Na cidade do Luso, a estadia, foi como uma miragem: breve e fugaz. Os Nord-Atlas, uma espécie de elefantes com asas, encarregaram-se de nos colocar no centro do nosso novo Universo: N’Riquinha, a poucos quilómetros da fronteira com a Zâmbia.

Sem comentários: