quinta-feira, 4 de setembro de 2008

A Savana - da Neriquinha ao Rivungo


Não houve tempo para explorar a Neriquinha. Para o meu grupo de combate, incumbido de render o grupo destacado no Rivungo, a viagem ainda não terminara. Comandado pelo alferes Fausto e coadjuvado por três furriéis (eu, o Duarte e o Silva) estava já preparado para partir, devidamente reforçado com os necessários especialistas: um cozinheiro, um enfermeiro, um radiotelegrafista, um transmissões, dois condutores e um corneteiro, somando o conjunto, cerca de 30 homens.
Engoli o almoço à pressa, apertei o cinturão, convenientemente apetrechado com cartucheiras, cantil e demais equipamento, agarrei na G3, atirei o saco com as tralhas para cima da berliet, tomei assento ao lado do Duarte, que já se instalara junto ao condutor e sob um sol inclemente, iniciámos a marcha em direcção à clareira que, parecendo dar continuidade à pista, apontava para sul.
As duas berliets rolavam uma atrás da outra, arrastando-se bamboleantes, numa marcha lenta, com os motores em esforço, lutando contra a falta de consistência do terreno arenoso que cedia facilmente sob o seu peso, vencendo penosamente cada metro de picada e sacudindo a sua carga, por efeito das irregularidades do terreno, que a dureza da suspensão não compensava, ameaçando cuspir quem não se agarrasse com firmeza. A picada, nome dado às únicas estradas que por ali existiam, reduzia-se a dois sulcos profundos, abertos pelos rodados das viaturas, num percurso sinuoso pela savana, ora penetrando na mata de árvores de pequeno porte, ora bordejando a zona não arborizada, normalmente alagada, a que os locais chamavam de chana.
Era o primeiro encontro com a temível picada e todo o conjunto envolvente, verdadeira materialização do teatro de operações que, até então, se limitara a uma antevisão imaginária de densas e perigosas matas, onde deveríamos aplicar as técnicas militares aprendidas, desde o rastejar à queda na máscara, passando da cambalhota em frente ao salto de peixe e toda a panóplia de artes destinadas a baralhar o inimigo. A realidade presente revelava-se diferente, onde cada momento, cada troço daquele cenário, constituía uma sucessão de quadros, desenrolando-se à nossa volta e trazendo novas sensações, novidades, temores, êxtase, certezas e incertezas de um mundo desconhecido que, dentro de algum tempo, se tornaria familiar. Nada se parecia com a tenebrosa mata que imaginara, cerrada, ameaçadora, escondendo mil e um perigos. Pelo contrário! Ali, tudo era plano. Nem a mais pequena elevação de terreno, morro ou encosta que pudesse acoitar o inimigo. Quanto à mata, o tipo de arvoredo deixava ver nitidamente a uma distância razoável para o seu interior, reduzindo os meus temores. Apenas o capim me preocupava. Esta vulgar erva africana crescia viçosamente por todo o terreno como seara verde, atingindo com frequência altura superior à de um homem, podendo perfeitamente esconder um mundo de gente sem que se desse por isso.
Esquadrinhava cada pormenor, num misto de curiosidade e apreensão, procurando, por um lado, identificar a eventual ameaça e por outro, desfrutar de um cenário sem igual. Ora tenso, ora descontraído, embora não pensando seriamente na iminência de um ataque, agarrava firmemente a G3, bala na câmara, pronta a disparar, não fosse o diabo tecê-las. Ao meu lado, o Duarte não ia mais descontraído. Pelo menos agarrava a arma com convicção idêntica, muito embora não se vissem condições, no acidentado do terreno, que fizessem lembrar as características que, durante a instrução, aprendêramos a identificar como as que poderiam esconder uma emboscada.
A região, encalacrada entre dois grandes desertos africanos (o Kalaari de um lado e o de Moçâmedes do outro) era marcada pelas suas influências. O terreno, para além de plano, era irritantemente arenoso, definindo uma paisagem de savana que se impunha de forma evidente. Por ali, nem sequer um seixo do tamanho de um caroço de azeitona podia ser encontrado. Quanto ao resto, imperava o clima tropical, caracterizado por ter duas estações no ano: a das chuvas, quente e húmida e a do cacimbo, nome herdado da neblina que, na época seca, invadia a região e que durante a noite, especialmente sobre a madrugada, fazia baixar a temperatura ao ponto de congelar as gotas do orvalho. Aliás, as gélidas noites do cacimbo, contrastando com a canícula que se fazia sentir durante todo o dia, desde a aurora até para lá do ocaso, determinavam amplitudes térmicas impensáveis, próprias dos desertos africanos.
Castigados pelo sol inclemente, empapados em suor, ao qual se colava o pó fininho e escuro que nos envolvia, já levávamos mais de duas horas de sacudidelas por uma picada paralela à chana que, espraiando-se à nossa direita, definia os limites do domínio do rio Cúbia, cujo caudal, disfarçado no meio da vegetação, alimentava o assomo de pântano à sua volta.
As pontes do Cúbia, ponto de referência no trajecto entre a Neriquinha e o Rivungo, constituindo o único local de passagem para a outra margem, não era mais do que um amontoado de terra despejada sobre a zona alagada, formando uma espécie de barreira, no topo da qual, o tempo deixou que se formasse uma picada irregular. Ponte propriamente dita, apenas dois curtos e estreitos pontões em cimento, construídos sobre a única parte em que o Cúbia deixava ver o seu tímido caudal, cujo volume crescia significativamente na época das chuvas. Era a existência destes dois tabuleiros, construídos alguns meses antes,que justificava o facto de o local ser conhecido por pontes do Cúbia, no plural.
Por razões de segurança, (na altura, não descortinei se da ponte, se nossa em caso de ataque) a passagem por este caminho tinha de ser feita a pé. As viaturas passariam vazias e sempre devagar.
A chana do Cúbia, aumentada na sua extensão e povoada aqui e ali de manadas de animais semelhantes a grandes gazelas que pastavam saltitando dentro de água, alargava-se agora do lado esquerdo da picada.
- São songs.
Gritou o condutor, procurando sobrepor a sua voz ao barulho da berliet.
- A sua carne é excelente.
Acrescentou, para de seguida concluir.
- O pior é que só as podemos atingir no meio da água e é quase impossível ir lá buscá-las.
- Há por aqui muita caça?
Perguntei, apenas movido pela curiosidade.
- Sim, muita e variada, mas nesta altura do ano, está enfiada na mata.
- Não percebo!
Retorqui.
- Com as chuvas, há muita erva no interior da mata e os animais não precisam vir comer às chanas, onde normalmente há pasto todo ao ano.
Esclareceu.
Estávamos em Novembro, época das chuvas, não demorando muito até que começasse a chover, assim, de repente, sem aviso prévio e sem pedir licença, uma chuva diluviana, intensa, como se baldes de água fossem continuamente despejados do céu, criando uma cortina de água que apenas deixava ver alguns metros adiante. Em África é assim; num momento, impera um sol abrasador e no momento seguinte, chove a cântaros. Para nos proteger, apenas o poncho, já que, por ali, as viaturas não tinham nem pára-brisas nem tejadilho e até o capô, sobre o motor, tinha sido retirado, como forma de minimizar o seu aquecimento, levado ao máximo pelo esforço necessário para vencer a resistência daquele terreno de areia.
O Duarte, a meu lado, desabafava agastado, por não conseguir acender o cigarro que insistia em não largar mesmo debaixo daquele mundo de água. Até então, fumara cigarro após cigarro, sem os tirar da boca. As mãos, mantinha-as ocupadas a segurar a G3. Quanto ao poncho, um impermeável militar eficaz, apenas nos protegia da cintura para cima. Com a água a escorrer por todos os lados, era como se estivéssemos sentados sobre um charco. Mas isso não era o pior. A água que se ia acumulando no sulco trilhado pelas viaturas, misturada com a areia e lama da picada, era impelida para cima por acção do chapinhar dos pneus e acto contínuo, aspergida contra a nossa cara pelas pás da ventoinha, borrifando-nos generosamente com uma espécie de polme lamacento, com uma frequência irritante.
Caiu a noite, ainda mal vencêramos metade do percurso, transformando a paisagem, num escuro pesado, adensado pela persistente chuva, apenas deixando ver fugidias sombras projectadas pelos faróis.
- Uma emboscada agora, tramava-nos.
Atirou o Duarte, deixando talvez sair o temor que lhe ia na alma.
- Não creio, os turras têm medo da chuva.
Respondi, tentando gracejar.
- Achas? A esta velocidade, basta apontarem um pouco acima dos faróis e acertam-nos.
Insistiu.
- O que eu acho é que, se nós não vemos nada nesta escuridão, eles também não.
Referi, procurando justificar o meu ponto de vista.
- Tanto mais que o Castanheira e os condutores, que já cá andam há muito, parecem perfeitamente descontraídos.
Rematei.
O Castanheira era o Furriel da outra companhia, que fora incumbido de nos levar ao destino e claro, ao volante, estavam condutores dos velhinhos. Na volta, era necessário trazer o pessoal que estava no Rivungo e os nossos ainda não conheciam os itinerários.
Mais ou menos para lá de metade do percurso, uma breve paragem para uma apresentação dos agentes da PSP que, para surpresa minha, tinham por missão a defesa e apoio das populações autóctones que habitavam os três Kimbos por ali localizados: o Liahona, no outro extremo de uma extensa chana alagada, seguido, a uma distância razoável, do Mugamba e finalmente o Demba, pequenos aldeamentos constituídos por aglomerados de cubatas de capim, isolados no meio do mato. A noite, que entretanto caíra, não deixara perceber a insegurança e precariedade em que viviam aqueles agentes da autoridade (dois em cada kimbo) já que a população, vivendo no seu meio e não conhecendo outro mundo, negava-se a dali sair.
Apresentações feitas e concluída a rápida conversa de circunstância, seguiu-se viagem pela picada sinuosa, trilhada pelas berliets que pareciam conhecer o caminho, alcançando-se finalmente o Rivungo já a noite se instalara havia tempo, decorridas cerca de oito horas após a saída da Neriquinha e percorridos pouco mais de 120 Km.
A impaciência, não disfarçada, de quem aguardou o dia inteiro pela nossa chegada, apressou os formalismos da passagem de testemunho e da responsabilidade por tudo o que por ali havia. O alferes encarregou-se de receber o material de guerra, equipamento de transmissões e outras coisas. O Silva conferiu e recebeu todo o equipamento de cozinha e géneros alimentícios armazenados. O Duarte, não me lembro, provavelmente deambulou por ali. Eu fiquei com a cantina, algo surpreendido por verificar que o grosso da existência era constituído por pilhas de grades de cerveja e caixas com tabaco. Tudo o mais se resumia a meia dúzia de artigos e o frigorífico alimentado a petróleo, cuja transferência incluía uma rápida explicação do seu funcionamento e manutenção, que procurei perceber.
- E é se quiseres ter cerveja fresca! Avisaram.
Os velhinhos tinham pressa em partir, não parecendo incomodados, nem com a hora tardia, nem com o tempo ou dureza do percurso, tal era o desejo de sair dali. Conferi a lista pelos artigos que compunham o stock da cantina, assinei a guia de entrega e só algumas semanas depois é que verifiquei que a soma estava propositadamente aumentada em 1000 escudos. Era um truque muito usado nestas passagens de responsabilidade e para as quais não tinha sido alertado. Afinal, eu era um simples atirador de infantaria e não estava previsto ter de me responsabilizar pelo funcionamento de uma cantina onde se vendia tabaco, cerveja e outras guloseimas, para além de alguns artigos de higiene pessoal.
As berliets partiram, engolidas pela noite, levando de volta o grupo rendido, ao mesmo tempo que a algazarra ia esmorecendo, aos poucos, até restar um silêncio absoluto, que me deixou a estranha sensação de ter sido abandonado algures no fim do mundo. A realidade visível, pouco mais era do que um barracão comprido, coberto a folhas de zinco que abarcavam parte do estreito terreiro fracamente iluminado, onde desembocavam as portas que davam acesso à messe, cantina, caserna do pessoal e refeitório.
A escuridão não deixava ver mais. Pela minha parte, não tinha noção do que ficava à direita ou à esquerda, para que lado era o norte ou o sul. Apenas sabia que nas traseiras, para lá da cozinha, corria o rio Cuando. Os velhinhos avisaram para não nos aventurarmos por lá, no escuro. Corríamos o risco de cair pelo barranco e sermos apresentados a algum dos jacarés que habitavam o rio. Pelo sim pelo não e dado o adiantado da hora, ficámo-nos pela exploração da nossa nova residência. Três pequenos quartos, mais um, à entrada, com uma mesa ao centro, servindo de posto de comando, sala de jantar e local de ocupação das horas de ócio daquele improvisado estado-maior. A um canto, uma minúscula casa de banho bem equipada: uma sanita, um lavatório e um bidão de 200 litros cheio de água. Ah… e um balde. Ali não havia água canalizada e a utilidade do balde era óbvia. Servia para retirar água do bidão e despejá-la onde fosse necessário: na sanita, no lavatório ou por cima de nós próprios, numa espécie de chuveiro em cascata, o que cada um fez, à vez, antes de nos esticarmos em cima das camas, iguais a todas as enxergas que conheci na tropa, convencido de que, com o cansaço de tão longa viagem, adormeceria de imediato.
Não foi assim. Era a primeira vez que dormia no teatro de operações e ninguém me tirava da cabeça que a guerra estava ali ao lado. Discutíramos a defesa, distribuíram-se as sentinelas, ordens e instruções foram dadas numa improvisação de defesa e segurança do pessoal e das instalações, agora ocupadas por militares inexperientes e desconhecedores do terreno.
Procurei dormir. Contudo, a cabeça cheia de temores, incertezas, raciocínios e recapitulações da vertigem dos últimos dias e talvez o estranhar da cama, não o permitiam, não obstante o cansaço a isso aconselhar. Revolvendo-me na cama à procura da melhor posição, tentava em vão esvaziar a cabeça que persistia em imaginar cenários de ataque ao aquartelamento, sem me decidir sobre qual o lado de onde seria mais provável o inimigo atacar: se do rio, se da esquerda, se da direita. E se tal acontecesse, como deveríamos reagir? Instintivamente tacteei a arma, para me certificar que continuava ali, bem ao lado, junto à cabeceira, onde dormia e dormiria sempre, durante os longos meses que por ali andei. Adormeci finalmente, vencido pelo cansaço, já com a madrugada prestes a anunciar o amanhecer.