sábado, 21 de fevereiro de 2009

O PALÚDICO

Durante toda a fase de instrução militar que antecedeu a mobilização para África, fomos sendo sistematicamente injectados com uma variedade de antídotos contra doenças e outras maleitas. Bem barafustávamos, especialmente naquele fim-de-semana prolongado totalmente estragado em consequência da ressaca resultante da inoculação da dose, chamada de cavalar que, não se sabendo exactamente o que era, se dizia constituir um cocktail de drogas que nos imunizaria contra todas as pragas.
Na fase que antecedeu o embarque para África, o reforço da vacinação visava tornar-nos imunes às conhecidas doenças tropicais, especialmente a doença do sono e a temível malária (ali chamada de paludismo) combate este que continuou, uma vez instalados nas Terras do Fim do Mundo. A doença do sono era prevenida com inoculações trimestrais, enquanto o paludismo obrigava à ingestão diária de comprimidos de resoquina.
Quanto à doença do sono e não obstante a região ser abundante em mosca tsé-tsé (principal veiculo de transmissão da doença) a verdade é que ninguém da companhia foi infectado. Já quanto ao paludismo a história é diferente. A resoquina apenas se revelou eficaz para muito poucos. A maioria apanhou a doença e muitos deles mais do que uma vez. Creio que a grande abundância de mosquitos conseguia inocular o vírus a um ritmo superior à capacidade de combate do medicamento. Provocando febres altas, castigava o corpo, levando ao delírio e incapacitando gente na força da idade, debilitando-os por largos períodos de tempo.
Eu, ou porque mais resistente ou porque em mim o medicamento era eficaz ou talvez porque o tomava sempre, nunca fui contagiado, não obstante a quantidade de vezes que era picado. No aquartelamento, estávamos mais ou menos protegidos pelas redes mosquiteiras, montadas em todas as portas e janelas e individualmente em cada cama, numa imitação grosseira de dossel. Na mata, à noite, a falta da rede protectora deixava-nos à mercê de hordas de mosquitos gulosos e anafados que, provavelmente fartos da pele tostada, ressequida e dura dos ganguelas, se banqueteavam sugando-nos o sangue, indiferentes aos cremes repelentes com que nos besuntávamos.
O Duarte era uma vítima especial, ficando de cama com mais frequência do que qualquer outro. Não porque se expusesse mais ao mosquitame, mas provavelmente porque era mais vulnerável ou então, imune à droga.
Pouco dado às regras militares, o Duarte era daqueles furriéis que não agradava às hierarquias. O Alferes Fausto, cumpridor das normas, disciplinado e disciplinador, talvez por ter um grande coração e dose cavalar de bom senso, não criava conflito, gerindo a bandalheira do Duarte com bonomia. Preferia ignorar, até porque o Duarte não era indisciplinado ou rezingão. Era talvez preguiçoso e pouco dado aos atavios que apelidava de “merdas da tropa”.
Apreciava cerveja, fumava muito, talvez em excesso e tinha uma predilecção por rock, dando preferência aos rebeldes da música americana de então. Idolatrava especialmente Jim Morrison e Janis Joplin e escarnecia de todos os que não considerava dignos de serem integrados no grupo dos iluminados. Exagerando a caricatura, cantarolava com voz de falsete as canções proscritas, encenando poses ridículas e caretas de bobo, para dar maior dimensão ao desprezo que lhes votava.
Certo dia, na Neriquinha, na camarata dos furriéis, completamente toldado pelo álcool, deu-lhe para o melodrama. Passava então na rádio uma das canções da Janis Joplin. Uma daquelas conhecidas … Me and Bobby McGee ... ou talvez outra, a puxar mais ao sentimento, provavelmente A Woman Left Lonely. Não me lembro exactamente. Mas a nostalgia bateu-lhe forte e despertou sentimentos. Lançou então, numa voz entaramelada e chorosa, um lamento lancinante que ainda hoje é recordado:
- Oh, Janis, Janis … porque morrestes?
Sem jeito para a tropa, sem jeito para cumprir ordens e menos jeito ainda para as dar, o Duarte era, no entanto, um receptáculo de doenças. Poucos acreditavam que ele sofresse de facto de algumas delas. Contudo, era certo que, se levasse a mão à testa e entendesse que estava com febre, nada o demovia da ideia. Se não estivesse, a ansiedade que gerava enquanto percorria a distância que levava à enfermaria, era suficiente para lhe subir a temperatura. Quando acabava de chuchar no termómetro, este marcava quase sempre 39º. Mas se não lhe ocorria sentir que estava doente, passava tempos sem que a febre por encomenda surgisse. De qualquer forma, a frequência com que a febre subia, fosse ou não culpa do paludismo, marcou-o para sempre. Foi apelidado de “O Palúdico” e creio que ainda hoje é recordado como tal.
Certo dia, no Rivungo, queixou-se. Nessa altura com fundamento. Apanhara paludismo, de verdade. E o termómetro confirmou-o. Creio que o facto de estar no Rivungo (só havia médico na Neriquinha) gerou pânico na sua cabeça, contribuindo para agravar mais ainda o seu estado de saúde. Sim o Duarte era hipocondríaco. Em último grau. Mesmo em excesso. Eu, pelo menos, nunca conhecera alguém assim.
O enfermeiro, que costumava dormir sozinho na enfermaria, diagnosticou que o seu estado recomendava cuidados. Entendeu assim ser preferível que o Duarte dormisse na enfermaria. Ali sempre estaria sob sua vigilância. Arrependeu-se. O palúdico não o deixou dormir cinco minutos seguidos. Durante toda a noite foi desfiando o catálogo das doenças que conhecia. Sempre que sentia um arrepio, uma dor, mesmo que pequena, associava sempre a sintomas de doenças que retirava do fundo do seu arquivo de maleitas. Um tremor ou uma contracção muscular, era tétano, um bocejo foi associado a doença do sono e uma batida mais forte do coração era um ataque cardíaco. Até sentiu que os ossos tinham perdido a rigidez, atribuindo isso a outra doença grave.
- Franqueira! Ajuda-me ... estou em delirium tremis!
Gemia, implorando os cuidados do enfermeiro.
Só não nomeou coisas pequenas como mau-olhado, panarícios ou pêlos encravados.
Quando a manhã nasceu, com olheiras de meter medo, o enfermeiro maldizia a ideia que teve em o transferir para a enfermaria.
- Este cabrão até nomeou doenças de que eu nunca tinha ouvido falar.
Lamentou-se.
O Duarte cumpriu a primeira comissão de três meses no Rivungo e ainda se manteve durante outros tantos na Neriquinha. Contudo, ou porque já não tinha defesas ou porque já era receptivo à doença, o paludismo visitava-o amiúde. Acabou por ser evacuado para o Cuito Cuanavale e não mais regressou, cumprindo o resto da comissão junto do comando de batalhão.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

A perseguição

... continuação da história anterior
A chegada da tropa ao Mugamba, embora demasiadas horas depois do ataque, descontraiu os agentes da PSP. Respiraram fundo. E a população também. Pelo menos foi o que me pareceu, não obstante o drama visível nos queixumes e no sobressalto que pairava no ar.
Fizeram-se os necessários reconhecimentos. O monte de cápsulas vazias por detrás da vedação do curro, denunciava a trincheira improvisada dos atacantes. Não havia vestígios de sangue. Um leve acidente de terreno formara uma protecção natural contra as balas da guarnição sitiada.
O Alferes retirou do bolso o mapa do terreno. Desdobrou-o, identificou na carta o ponto onde estávamos e procurou adivinhar o percurso da fuga. Cofiou o ralo bigode, coçou a cabeça por sob o quico, aconselhou-se com os dois polícias e conferenciou com os furriéis. Urgia dar início à perseguição, contudo, não seria aconselhável embrenharmo-nos naquela mata apenas confiados no mapa da região. Por ali apenas existiam carreiros que conduziam às zonas agrícolas disseminadas pelas redondezas. O mapa indicava um ou outro e não era certo que ainda existissem. Mesmo que assim fosse, o mais provável era já não seguirem a direcção traçada no mapa. As chuvadas tropicais eram intensas e apagavam facilmente qualquer pequeno carreiro sobre a areia solta. Assim, a opção mais segura e obviamente mais sensata, era levar um guia. Alguém que conhecesse bem as matas e soubesse orientar-se por métodos diferentes daqueles que aprendêramos.
Metemo-nos a caminho atravessando a aldeia por entre as cubatas, em direcção ao trilho que se divisava à entrada da mata, no outro lado do pequeno descampado que separava a zona arborizada do perímetro do aldeamento.
Durante algum tempo seguimos o trilho arenoso que serpenteava por entre as árvores, óbvio caminho utilizado diariamente pela população nas suas deslocações para os seus afazeres diários. A princípio, em ritmo acelerado mas esmorecendo pouco a pouco, à medida que o cansaço baralhava os músculos e descoordenava a respiração, já de si dificultada pelo intenso calor.
A ideia era seguir as pistas deixadas pelos guerrilheiros. Contudo, não me pareceu que aqueles sinais fossem claros a esse ponto. O terreno era de areia solta, fofa, cansativa, cedendo facilmente sob os pés. A vegetação escassa e as árvores espaçadas. Não havia morros, pedras ou acidentes de terreno e até as plantas rasteiras eram tão resistentes que nem se ressentiam ao serem pisadas. Na verdade, cheguei a pensar que aquele carreiro não era mais do que o rasto deixado pelos que iam na frente. A certa altura, a linha que seguíamos desapareceu totalmente e com ela as pistas.
Dez minutos de descanso, apenas o tempo suficiente para retomar o fôlego, reiniciando-se a marcha, perseguindo uma direcção indefinida. Os cenários sucediam-se, iguais aos anteriores. As mesmas árvores, a mesma vegetação, as mesmas chanas, a mesma planura, o mesmo sol, as mesmas moscas, pequeninas como mosquitos, quais satélites à volta da nossa cabeça, atascando-se no copioso suor, entrando pelas narinas, sugadas pelo respirar ofegante, ou descendo até à garganta juntamente com o fino pó levantado pelo arrastar penoso dos pés sobre o terreno ressequido. Apenas as costas do guia pareciam constituir um ponto a alcançar, sempre a fugir à nossa frente, num ritmo imparável, impossível de secundar. Só o Alferes Fausto, qual locomotiva, como que rebocando os seus homens, parecia conseguir acompanhá-lo.
A ordem para parar caiu que nem uma bênção. As pernas trôpegas, inconscientes, com os músculos desobedecendo às ordens do cérebro, já mal podiam com o corpo. O saco com as rações de combate, não obstante já aliviado das latas do almoço, parecia ter aumentado de peso. O cinturão, carregado com o peso do cantil, cartucheiras e granadas, massacrava a anca, tornando-a dorida. Apenas a G3 parecia não pesar. Encostei-me a uma árvore e deixei-me escorregar deslizando as costas pela casca rugosa até o rabo encontrar o chão. Deixei-me ficar, procurando recobrar o fôlego enquanto maquinalmente levava o cantil à boca, sorvendo um pouco da água que ainda restava.
Espojados por aqui e por ali, estendidos ou recostados nos troncos das árvores, aproveitando a escassa sombra das poucas copas mais densas, lutando contra o bando de insectos que não nos largavam, procurávamos recobrar o fôlego e retemperar forças.
Dei por mim a cogitar sobre as capacidades físicas daqueles homens para uma perseguição tão desigual. Brancos, europeus, a desafiarem a inclemência de um clima a que não estavam habituados, em locais inóspitos, desconhecidos, anormais, perseguindo um bando de gente que ali nasceu e nunca conheceu outros ambientes. Para eles, calor, areia, sol, chuva, noite ou dia, era tudo o que conheciam. E isso era visível na resistência e ágil desenvoltura do guia, deambulando de cá para lá, fresco, sem ponta de cansaço. Apenas o suor a escorrer-lhe da testa evidenciava o efeito do calor e do esforço, em nítido contraste com uma tropa esfrangalhada, morta de cansaço. Para mim isso era a prova de que o inimigo já estava longe, não tendo a tropa condições físicas para os perseguir. Se naquele momento nos caíssem em cima, riam-se primeiro e dizimavam-nos depois. Olhei à volta, desconfiado. Contudo, não divisei nada de suspeito por detrás dos escassos arbustos circundantes.
Entretanto, caíra a noite. O local não fora escolhido de propósito. Abancámos ali porque de noite não era possível avançar. Ordens sussurrantes definiram as escalas de sentinela, cada um se ajeitou o melhor que pôde e engoliu a ração feita jantar. A maioria adormeceu na posição em que estava. Estiquei-me no chão, cobri-me com o poncho. O calor apenas apertava de dia. Adormeci quase de imediato embalado por um coro de ruídos apenas audíveis no meio do silêncio da noite que pintara de escuro denso a mata até então luminosa.
Acordei. Não sei bem se por efeito de um qualquer barulho, ou se com a luz do sol que prometia outro dia infernal. O meu relógio ainda não marcava 5 horas da manhã. Por ali o sol nascia cedo, madrugando, como se tivesse pressa ou com muito que fazer. Uma lata de leite com chocolate acompanhado de duas ou três bolachas compuseram um pequeno-almoço que aliviou o peso do saco sobre os ombros. Apertei o cinturão e preparei-me para iniciar a marcha.
Entretanto, o guia descobrira, escondidas debaixo de uma folhagem rasteira, umas bagas amarelas, pequenas, pouco maiores que ervilhas, porém doces, saborosas. Mais além um arbusto, carregado de frutos avermelhados. Pareciam abrunhos, mas o arbusto não. Sabiam bem, embora ácidos, talvez em demasia, mas matavam a sede. Intrigou-me uma árvore enorme, semelhante a todas as outras. Esta, contudo, exibia frutos reluzentes. Pareciam laranjas, quer na cor quer no tamanho. Porém, a casca, lisa, era rija, diria lenhosa. Partida, como se de um coco se tratasse, deixava ver, no seu interior, uma polpa castanha envolvendo sementes do tamanho de avelãs. Era extremamente doce e agradável ao paladar.
- Maboco! Explicou o guia partindo um com ajuda da catana.
Fiquei cliente, até porque permitiu desenjoar das rações enlatadas que transportava.
Seguíamos agora em direcção ao Rivungo, a corta mato, numa marcha cada vez mais sofrida, aniquilando as forças, diminuindo o ritmo e retardando a marcha. A cada nova pergunta, o guia respondia: - É já ali.
Procurávamos o ali, alongando o olhar por entre as árvores, na vã esperança de divisar ao longe a silhueta familiar do aquartelamento. Acelerava-se o passo, num esforço roubado às últimas reservas de energia. Mas o já ali, repetido pelo incansável guia, não aparecia.
Passava do meio-dia. O calor tórrido associava-se ao cansaço, vencendo a última resistência de uma tropa à beira do esgotamento e desidratação. Mais uma paragem, desta feita mais longa. Aproveitámos para comer. O Rivungo era já ali, mas havia que retemperar o corpo. Debalde, a paragem arrefeceu os músculos e alguns (eu incluído) não conseguiram arranjar forças para avançar.
Os mais resistentes (ou mais bem preparados) continuaram. Os outros ficaram ali, esticados sob as ténues sombras de copas tímidas, aguardando que uma viatura os viesse resgatar. Fiquei a ver o grupo desaparecer por entre a mata, rebocado pelo Alferes Fausto, cuja capacidade de resistência me impressionava. Nunca o vi soçobrar perante aquele clima hostil.
O familiar ruído do motor do unimog começou a ouvir-se ao longe. Levantámo-nos. A viatura avançava a corta-mato, contornando as árvores numa lenta gincana. O guia, braço esticado para a frente, sentado sobre a estrutura da carroçaria, pés sobre o assento ao lado do condutor, indicava o caminho. Não errara o local onde nos deixara. Ainda hoje continuo a não perceber como conseguiam orientar-se com tal precisão, num terreno sem pontos de referência.
A tarde ia a meio quando, já recuperados mas com os músculos todos doridos, chegámos ao Rivungo. Vesti uns calções, agarrei no sabonete e mergulhei no rio, uma, duas, três vezes, passando sabonete até sentir que toda a sujidade entranhada saíra.
Nessa noite, mesmo estando no fim do mundo, não obstante a enxerga militar e a precariedade das instalações, experimentei pela primeira vez uma sensação inesperada de conforto e segurança. Após dois dias deambulando e dormindo na mata, um tecto, uma cama e dois lençóis, personificavam o aconchego doce do lar.