domingo, 15 de fevereiro de 2009

A perseguição

... continuação da história anterior
A chegada da tropa ao Mugamba, embora demasiadas horas depois do ataque, descontraiu os agentes da PSP. Respiraram fundo. E a população também. Pelo menos foi o que me pareceu, não obstante o drama visível nos queixumes e no sobressalto que pairava no ar.
Fizeram-se os necessários reconhecimentos. O monte de cápsulas vazias por detrás da vedação do curro, denunciava a trincheira improvisada dos atacantes. Não havia vestígios de sangue. Um leve acidente de terreno formara uma protecção natural contra as balas da guarnição sitiada.
O Alferes retirou do bolso o mapa do terreno. Desdobrou-o, identificou na carta o ponto onde estávamos e procurou adivinhar o percurso da fuga. Cofiou o ralo bigode, coçou a cabeça por sob o quico, aconselhou-se com os dois polícias e conferenciou com os furriéis. Urgia dar início à perseguição, contudo, não seria aconselhável embrenharmo-nos naquela mata apenas confiados no mapa da região. Por ali apenas existiam carreiros que conduziam às zonas agrícolas disseminadas pelas redondezas. O mapa indicava um ou outro e não era certo que ainda existissem. Mesmo que assim fosse, o mais provável era já não seguirem a direcção traçada no mapa. As chuvadas tropicais eram intensas e apagavam facilmente qualquer pequeno carreiro sobre a areia solta. Assim, a opção mais segura e obviamente mais sensata, era levar um guia. Alguém que conhecesse bem as matas e soubesse orientar-se por métodos diferentes daqueles que aprendêramos.
Metemo-nos a caminho atravessando a aldeia por entre as cubatas, em direcção ao trilho que se divisava à entrada da mata, no outro lado do pequeno descampado que separava a zona arborizada do perímetro do aldeamento.
Durante algum tempo seguimos o trilho arenoso que serpenteava por entre as árvores, óbvio caminho utilizado diariamente pela população nas suas deslocações para os seus afazeres diários. A princípio, em ritmo acelerado mas esmorecendo pouco a pouco, à medida que o cansaço baralhava os músculos e descoordenava a respiração, já de si dificultada pelo intenso calor.
A ideia era seguir as pistas deixadas pelos guerrilheiros. Contudo, não me pareceu que aqueles sinais fossem claros a esse ponto. O terreno era de areia solta, fofa, cansativa, cedendo facilmente sob os pés. A vegetação escassa e as árvores espaçadas. Não havia morros, pedras ou acidentes de terreno e até as plantas rasteiras eram tão resistentes que nem se ressentiam ao serem pisadas. Na verdade, cheguei a pensar que aquele carreiro não era mais do que o rasto deixado pelos que iam na frente. A certa altura, a linha que seguíamos desapareceu totalmente e com ela as pistas.
Dez minutos de descanso, apenas o tempo suficiente para retomar o fôlego, reiniciando-se a marcha, perseguindo uma direcção indefinida. Os cenários sucediam-se, iguais aos anteriores. As mesmas árvores, a mesma vegetação, as mesmas chanas, a mesma planura, o mesmo sol, as mesmas moscas, pequeninas como mosquitos, quais satélites à volta da nossa cabeça, atascando-se no copioso suor, entrando pelas narinas, sugadas pelo respirar ofegante, ou descendo até à garganta juntamente com o fino pó levantado pelo arrastar penoso dos pés sobre o terreno ressequido. Apenas as costas do guia pareciam constituir um ponto a alcançar, sempre a fugir à nossa frente, num ritmo imparável, impossível de secundar. Só o Alferes Fausto, qual locomotiva, como que rebocando os seus homens, parecia conseguir acompanhá-lo.
A ordem para parar caiu que nem uma bênção. As pernas trôpegas, inconscientes, com os músculos desobedecendo às ordens do cérebro, já mal podiam com o corpo. O saco com as rações de combate, não obstante já aliviado das latas do almoço, parecia ter aumentado de peso. O cinturão, carregado com o peso do cantil, cartucheiras e granadas, massacrava a anca, tornando-a dorida. Apenas a G3 parecia não pesar. Encostei-me a uma árvore e deixei-me escorregar deslizando as costas pela casca rugosa até o rabo encontrar o chão. Deixei-me ficar, procurando recobrar o fôlego enquanto maquinalmente levava o cantil à boca, sorvendo um pouco da água que ainda restava.
Espojados por aqui e por ali, estendidos ou recostados nos troncos das árvores, aproveitando a escassa sombra das poucas copas mais densas, lutando contra o bando de insectos que não nos largavam, procurávamos recobrar o fôlego e retemperar forças.
Dei por mim a cogitar sobre as capacidades físicas daqueles homens para uma perseguição tão desigual. Brancos, europeus, a desafiarem a inclemência de um clima a que não estavam habituados, em locais inóspitos, desconhecidos, anormais, perseguindo um bando de gente que ali nasceu e nunca conheceu outros ambientes. Para eles, calor, areia, sol, chuva, noite ou dia, era tudo o que conheciam. E isso era visível na resistência e ágil desenvoltura do guia, deambulando de cá para lá, fresco, sem ponta de cansaço. Apenas o suor a escorrer-lhe da testa evidenciava o efeito do calor e do esforço, em nítido contraste com uma tropa esfrangalhada, morta de cansaço. Para mim isso era a prova de que o inimigo já estava longe, não tendo a tropa condições físicas para os perseguir. Se naquele momento nos caíssem em cima, riam-se primeiro e dizimavam-nos depois. Olhei à volta, desconfiado. Contudo, não divisei nada de suspeito por detrás dos escassos arbustos circundantes.
Entretanto, caíra a noite. O local não fora escolhido de propósito. Abancámos ali porque de noite não era possível avançar. Ordens sussurrantes definiram as escalas de sentinela, cada um se ajeitou o melhor que pôde e engoliu a ração feita jantar. A maioria adormeceu na posição em que estava. Estiquei-me no chão, cobri-me com o poncho. O calor apenas apertava de dia. Adormeci quase de imediato embalado por um coro de ruídos apenas audíveis no meio do silêncio da noite que pintara de escuro denso a mata até então luminosa.
Acordei. Não sei bem se por efeito de um qualquer barulho, ou se com a luz do sol que prometia outro dia infernal. O meu relógio ainda não marcava 5 horas da manhã. Por ali o sol nascia cedo, madrugando, como se tivesse pressa ou com muito que fazer. Uma lata de leite com chocolate acompanhado de duas ou três bolachas compuseram um pequeno-almoço que aliviou o peso do saco sobre os ombros. Apertei o cinturão e preparei-me para iniciar a marcha.
Entretanto, o guia descobrira, escondidas debaixo de uma folhagem rasteira, umas bagas amarelas, pequenas, pouco maiores que ervilhas, porém doces, saborosas. Mais além um arbusto, carregado de frutos avermelhados. Pareciam abrunhos, mas o arbusto não. Sabiam bem, embora ácidos, talvez em demasia, mas matavam a sede. Intrigou-me uma árvore enorme, semelhante a todas as outras. Esta, contudo, exibia frutos reluzentes. Pareciam laranjas, quer na cor quer no tamanho. Porém, a casca, lisa, era rija, diria lenhosa. Partida, como se de um coco se tratasse, deixava ver, no seu interior, uma polpa castanha envolvendo sementes do tamanho de avelãs. Era extremamente doce e agradável ao paladar.
- Maboco! Explicou o guia partindo um com ajuda da catana.
Fiquei cliente, até porque permitiu desenjoar das rações enlatadas que transportava.
Seguíamos agora em direcção ao Rivungo, a corta mato, numa marcha cada vez mais sofrida, aniquilando as forças, diminuindo o ritmo e retardando a marcha. A cada nova pergunta, o guia respondia: - É já ali.
Procurávamos o ali, alongando o olhar por entre as árvores, na vã esperança de divisar ao longe a silhueta familiar do aquartelamento. Acelerava-se o passo, num esforço roubado às últimas reservas de energia. Mas o já ali, repetido pelo incansável guia, não aparecia.
Passava do meio-dia. O calor tórrido associava-se ao cansaço, vencendo a última resistência de uma tropa à beira do esgotamento e desidratação. Mais uma paragem, desta feita mais longa. Aproveitámos para comer. O Rivungo era já ali, mas havia que retemperar o corpo. Debalde, a paragem arrefeceu os músculos e alguns (eu incluído) não conseguiram arranjar forças para avançar.
Os mais resistentes (ou mais bem preparados) continuaram. Os outros ficaram ali, esticados sob as ténues sombras de copas tímidas, aguardando que uma viatura os viesse resgatar. Fiquei a ver o grupo desaparecer por entre a mata, rebocado pelo Alferes Fausto, cuja capacidade de resistência me impressionava. Nunca o vi soçobrar perante aquele clima hostil.
O familiar ruído do motor do unimog começou a ouvir-se ao longe. Levantámo-nos. A viatura avançava a corta-mato, contornando as árvores numa lenta gincana. O guia, braço esticado para a frente, sentado sobre a estrutura da carroçaria, pés sobre o assento ao lado do condutor, indicava o caminho. Não errara o local onde nos deixara. Ainda hoje continuo a não perceber como conseguiam orientar-se com tal precisão, num terreno sem pontos de referência.
A tarde ia a meio quando, já recuperados mas com os músculos todos doridos, chegámos ao Rivungo. Vesti uns calções, agarrei no sabonete e mergulhei no rio, uma, duas, três vezes, passando sabonete até sentir que toda a sujidade entranhada saíra.
Nessa noite, mesmo estando no fim do mundo, não obstante a enxerga militar e a precariedade das instalações, experimentei pela primeira vez uma sensação inesperada de conforto e segurança. Após dois dias deambulando e dormindo na mata, um tecto, uma cama e dois lençóis, personificavam o aconchego doce do lar.

1 comentário:

Gabriel Costa disse...

Óptimo! Sente-se África...e o sabor da fruta selvagem!
Lembro-me bem dos coitados dos polícias, abandonados no Mugamba e no Liaona.
Tinham sempre uma CUCAS refrescadas num tambor de 200 litros cheio e carvão vegetal.