domingo, 29 de março de 2009

N'riquinha - Um E.T.D. sem retorno...

Jamais consegui explicar a razão da minha afeição às gentes do aldeamento da N´riquinha.
Porque fiz quase minhas as dores daquela gente e porque sofri na partida, quando era uma incontida alegria que me deveria inundar por finalmente abandonar aquele autêntico “buraco” onde nos amarraram longos dezoito meses e meio.
Porque interiorizei o sofrimento daquela gente e, nesse sentido, quanto martirizei a “minha tropa” em apoios, transportes e protecção de uma população que não tinha que me dizer nada, porque eu estava ali para fazer a guerra e não para me sensibilizar com o sofrimento escorrido dos nossos 500 anos de ocupação, em que nem a língua materna fomos capazes de lhes transmitir.
Talvez a minha origem humilde possa explicar este acolhimento insensato para um “guerreiro” armado para fazer a guerra. Talvez se tenham enganado os Senhores da Guerra quando me descortinaram engenho e chama para a beligerância a que me destinaram; ou, quem sabe, nem tenham tido tempo para perceberem que a peça não era muito talhada para a função almejada.
Talvez a comunhão sempre viva no dia-a-dia da minha aldeia tenha permitido e incentivado esta minha extensão às agruras das gentes das Terras do Fim do Mundo que nos calharam em sorte e em tempo de guerra.
Talvez “a minha tropa” nunca venha a entender porque os obriguei a tanto tempo extra em devoção a gente tão despida de valores materiais, mas tão rica na nobreza de nos aceitarem com 500 anos de soberania prepotente, tempo aparentemente insuficiente para lhes termos dispensado uma réstia de dignidade que nunca fomos capazes de lhes proporcionar.
Quem sabe se não me pesaram na consciência esses 500 anos de ostracismo e desdém com que brindámos o seu consentimento em deixar-se ser portugueses sem o pedirem.
A partida de N’riquinha foi dos momentos mais doridos de entre todos os 1400 dias de serviço militar a que me vi obrigado a cumprir.
Não encontro melhor forma de vos fazer compreender o meu sentimento por aquela gente senão transcrevendo-vos como o vivi.
Apenas referir que este escrito tem cerca de nove anos. Li-o uma única vez depois de publicado. Não consegui voltar a lê-lo.
Não será hoje que o faço. Transcrevo-o apenas.

“…A grande viagem vai começar. N’riquinha-Luanda.
Dois mil quilómetros em linha recta. Bastantes mais pelas picadas e asfaltos que nos esperavam.

As despedidas estão feitas. Cerca de 140 militares distribuem-se por não sei quantos camiões civis, sentando-se sobre as caixas, malas e múltiplas embalagens, que albergam uma mistura de espólios de guerra com esbulhos de uma civilidade havia muito perdida e encaixotada, e que agora cortejavam a esperança de poderem voltar a florescer, depois de vencido o bafio e a poeira do tempo.
A primeira viatura faz-se preguiçosa e indolente à porta de saída. Soam os primeiros gritos de alegria de despedida de um inferno que por fim se extinguia. Em pé os soldados, enfardados num camuflado desbotado dos tombos da guerra, erguem a G3 como se acabados de conseguir a maior vitória das suas vidas. Os putos, menos doridos e molestados pelos sentimentos de proximidade e pieguice dos adultos, saltitavam em bandos ao lado das primeiras viaturas, alegremente contagiados pela alegria que explodia em cada uma delas.
Ao fundo, comedidamente à distância, na beira do kimbo defronte da picada por onde iríamos passar, aglomera-se um magote de gente silenciosa e mortalmente imóvel. Mulheres com crianças às costas, velhos que se vergam à frente apoiados em paus longos, raparigas adolescentes de braços cruzados que mordem uma ponta do pano que lhes envolve o corpo esguio, mulheres idosas, que se ficam mais atrás apoiando-se na última cubata, com a mão sobranceira aos olhos protegendo-se do sol.
Um kimbo inteiro.
Um kimbo inteiro veio despedir-se da tropa matchiririca que chegou um dia para fazer a guerra com armas que matam e acabou por se consumir noutras batalhas tão indesejáveis e perversas quanto aquela. Uma luta pela dignidade da vida dos que nada tinham e uma autêntica guerra contra o isolamento e as agruras duma fome ignóbil de comunidade perdida nos confins de África, uma autêntica tribo de índios ainda perdida nos confins duma Amazónia deserta, também esta em vias de extinção por via do progresso e de causas justas.
A coluna já se forma lá fora do aquartelamento iniciando preguiçosa uma caminhada de serpente, marcada por nuvens de poeira que se vão elevar nos céus assinalando a sua passagem. A picada segue inicialmente a linha da pista de aviação em direcção a Mavinga, correndo paralela ao quartel e ao kimbo.
Agitam-se lenços, braços e gritos. Uns quantos não resistem e correm até junto da picada. Crianças, adolescentes e mulheres, algumas com crianças às costas. O movimento das viaturas induz-lhes o acompanhamento destas.
Correm. Num impulso contagiante, mais gente vem descendo por entre tufos de capim seco que saltam com destreza. Já há uma pequena multidão que corre paralela à coluna acenando e gritando palavras que continuo sem entender o significado mas que desta vez dispenso tradução. Alguns correm apenas e nada dizem, nada fazem. Apenas querem correr e ficar mais um pouco junto de nós. Uma derradeira companhia, um último momento de uma despedida que já levava dias. Apenas o prolongar um pouco mais da agonia do fim de uma amizade fraterna que a proximidade confortava e induzia um pouco mais de segurança, bem-estar e protecção.
Centenas de metros percorridos e quase ninguém desiste. Corações ao alto, corações ofegantes, corações que persistem numa corrida sem fim nem proveito. Uma corrida quase suicida de ir até ao fim, de ir até cair.
Estou sentado ao lado do condutor que sorri meio estupefacto e me diz.
- Nunca vi nada disto.
Mando abrandar.
Que raio de ideia. Retemperam-se do esforço e dispõem-se a ir muito mais longe.
Mando acelerar e deixo de olhar. Fecho os olhos naufragados numa comoção que transcende aquilo que se espera de um comandante de guerra. Esqueceram-se que um militar nasce militar, não se fabrica por conveniência. Sinto que aceleramos e deixo passar mais uns metros seguros de não ver mais aquela espécie de loucura, de suicídio colectivo, um mar de baleias que dão à costa e se matam com um sorriso de prazer inexplicável recusando voltar atrás, que nos sobreleva o entendimento ou nos desvirtua a propalada razão e superioridade humana.
Por entre um marejar turvo de imagens desfocadas consigo perceber que há ainda um resistente que ao nosso lado se mantém firme de olhos em frente e um sufoco estampado no rosto. Traz vestida uma pequena tanga que esvoaça e denuncia os restos de um camuflado há muito esquartejado, que disfarça agora a sua nudez e sufoca o que resta de uma dignidade que recusa perder.
Fecho os olhos em definitivo e recosto-me no banco. Passo as costas da mão pela testa em busca de um suor que não existe e prolongo o gesto pelos cantos dos olhos, onde estrangulo uma dor que se me escorre de dentro sem que se entenda bem onde nasce. Preciso urgentemente de me explicar quando percebo que o condutor me olha de soslaio e desvia a atenção da picada.
- ... Esta poeirada...!
- ...?!
Mantenho-me assim por dez minutos e percorro em sentido inverso aqueles dois, três quilómetros já percorridos. Tento entender e não consigo. Ficamos sempre com uma imagem de um determinado bem que se faz, de umas migalhas que se oferecem e nos deixam alguma paz de espírito que nos conforta o sentimento de bem-estar connosco próprios. De acordo com as circunstâncias em que ali fomos vivendo todo aquele tempo, atribuímos um determinado significado às coisas, sempre parco quando o comparamos com os nossos padrões de vida, os nossos hábitos e anseios. Esquecemo-nos que o pouco que por vezes se oferece tem um significado tão intenso e duradouro quanto miserável é o significado das suas vidas e quão vulneráveis ficam os seus corações a gestos de pouca monta, mas tesouros de riqueza desmedida que retribuem com as únicas moedas que possuem: a solidariedade e o reconhecimento.
O condutor não pára de olhar pelo retrovisor.
- Parece que já ficaram para trás, diz espreitando dos dois lados como que receando que se tivessem passado para o outro lado.
Não arrisco a abrir os olhos para confirmar. No fundo, talvez eu quisesse guardar aquela imagem lá bem no meu íntimo. Uma prenda simbólica que nos cinzela a memória corroída por inutilidades. Uma fenda esculpida a marteladas de vida que nos deixa marcas que perduram pela vida fora e nos humedece ainda os olhos, trazendo à mente uma catadupa de sons e imagens de significado imenso e de tão grata recordação.
- Estava a ver que vinham atrás de nós até Mavinga...
Diz-me ainda o condutor, mais preocupado com aquela perseguição tenaz, que com o trilho baço de poeira da viatura da frente.
Não! Virão atrás de nós muito para lá de Mavinga. Virão atrás de nós todo o tempo que eu viver e for capaz de me lembrar deles, da sua simplicidade, dos seus corações abertos, dos seus hábitos e tradições, da sua inocência de fazer casa grande para captão e mulher do Puto, de acreditarem numa pátria que nunca viram nem sentiram como sua, de serem capazes de acreditar todos os dias em qualquer coisa sem terem nada em que acreditar.
Abro por fim os olhos. Agora sim mergulhados num verdadeiro tormento de poeira, uma extensão daquele escuro de nuvem confusa que me faz perder o norte e me baralha a mente com pensamentos descoordenados que me desalinham a recentíssima alegria de partir.
Não me sinto.
Não sei se venho. Não sei que partes de mim vêm. Não sei o que trago. Não sei o que deixo. Não sei o que perco.
Mas sei o que ganho.
E que me dói já a certeza de jamais poder com eles usufruir do que bebi dessas lições de vida sentida e dorida, trituradas a golpes magoados de pilão e sublimadas a bálsamos de batucadas ardentes vencidas pela noite dentro, até que a dor morresse e um novo dia de fé ausente nascesse.
Já não ouço vozes. Só corações soçobrando num adeus derradeiro que se extingue num último suspiro sem sinais de revolta.
Agitam-me os tombos da picada. Agitam-me os meus pensamentos desarrumados. Agitam-se-me revoltas de sentimentos de impotência e remorsos de me vir embora quase feliz. De deixar para trás um fosso com gente dentro que chegou a acreditar que tinha chegado a hora de fugir daquele gueto de guerra e poder morar livre como o vento no mato longínquo e seguro das terras do Cuando-Cubango.
- Estava a ver que vinham atrás de nós até Mavinga… (120 Km)
De soslaio vou dando miradas pelo espelho retrovisor, não sei se na esperança de ainda ver alguém, se de não ver. Mas se vir, garanto a mim próprio que mando parar a coluna e o abraço longamente até sentir que o seu coração se acalma e se me ensurdecem os gritos de despedida que ainda ouço.
Convenço-me por fim que já não vêm. Convenço o condutor a olhar apenas em frente porque é por ali que passa o futuro. Tenho pela frente quatro dias de comer quilómetros de poeira que embaciam um céu limpo sem nuvens. Um circo em movimento que se move em busca de outros públicos e os mesmos aplausos dos que querem continuar donos e senhores da terra que, para muitos, os viu nascer.
Mavinga, de passagem. Quase sem tempo para uma cerveja refrescante que nos lave estômago e a bexiga dos primeiros 120 km de um pó eterno que mastigávamos já com naturalidade, quando o sentíamos ranger entre dentes ou lacrimejar turvo que escorria pelo canto do olho levado pelo vento que nos temperava das ondas tórridas de um calor sempre sufocante.
Andar, andar. Está no andar. Dali para fora. Com calor, com sufoco, com gosto ou desgosto.
Um último relance pelo fim da picada que vinha de N’riquinha. Um último sossego de caminho vazio onde a poeira fina ainda paira no ar como cacimbo seco e colorido obstinado em ficar por ali tingindo as árvores da cor da picada.
- Estava a ver que vinham atrás de nós até Mavinga… – ainda me ressoa perturbador como vaga que me quer engolir e atirar de encontro ao rochedo do meu medo de olhar para trás…”


Pedro Cabrita

N´riquinha – Entregar, peça por peça, um quartel vazio de gente e de almas…

Tinha deixado a promessa de por aqui passar com mais regularidade, deixando uma ou outra intervenção que ecoasse a nossa memória colectiva daqueles anos 71/73. Não que não tenham buscado e rebuscado uma ou outra história ainda “secreta” que valesse a pena trazer ao conhecimento dos nossos cabelos brancos e olhos ávidos de lembranças de uma mocidade que nos calhou viver em comunhão e em sofrimento.

Mas a verdade é que, para já, não encontrei senão episódios dispersos a que acabei por não dar relevo.

Prometo continuar a procurar. A memória já não é o que era; mas aquela daqueles anos ficou como marca indelével, que se nos vai avivando em cada ano em que matamos saudades nos encontros que o Duarte em boa hora empreendeu.

Mas este vazio de reconstrução de histórias novas também tem uma outra justificação que se prende a uma ou outra aventura literária em que me fui metendo, acabando por quase esgotar o manancial de narrativas passíveis de reproduzir agora e de novo.

Entendo, no entanto, que este lugar nos deve merecer um inusitado carinho, louvando, desde já, o Egídio Cardoso pelas belas prosas e fotos com que nos tem brindado. Pela minha parte farei o possível.

Deste modo, e perdoem-me a falta de originalidade, achei que talvez não fosse despropositado trazer um ou outro eco de trechos que já escrevi noutros sítios, na certeza de que muitos dos nossos companheiros ainda os não terão lido e outros nem tenham lá chegado, se porventura se aventuraram a lê-los.

Escolhi duas situações. Esta que aqui vos vou deixar e uma outra que transcreverei noutra folha.

Especialmente para a malta do “arame” (para os leigos, não confundir com “malta do dinheiro”… O “arame” aqui era o arame farpado, querendo referir os militares especialistas que faziam a sua actividade militar no aquartelamento, logo, dentro do arame farpado); dizia então que, para estes, e não só, deixava a recordação da entrega do aquartelamento à Companhia que nos foi render e os milhares de apetrechos e artefactos que foram necessários contabilizar e conferir, numa saga inimaginável, ou só admissível numa instituição como a militar. Também para muitos outros que não fará a mínima ideia de como aquilo era.

Então foi mais ou menos assim que eu senti aqueles três ou quatro dias em que cheguei a ter cãibras na mão direita de tanto assinar papel:

“… Por fim a trouxa militar está entregue. As mais de mil e quinhentas assinaturas estão rabiscadas noutros tantos formulários e modelos militares garantindo a passagem de testemunho, consubstanciado em milhares de peças e pecinhas com os mais variados tamanhos e funções.

Garfos, quase conferidos dente a dente para verificar da sua operacionalidade, colheres, casas, pré-fabricados com telhas de zinco que voam nas tempestades mas param submissas a cinquenta metros de distância e aguardam que as tragam de volta vezes sem conta, como crianças que se obstinam em fugir ao controlo dos progenitores; máquinas de escrever, que por vezes escreviam; mapas, que falavam mas nada diziam e por vezes mentiam; cadeiras, secretárias (de madeira…), chaves de fenda, de cruzeta, de boca, sem boca, com dentes, sem dentes; motores que trabalhavam, outros que se reformavam, e ainda os que morreram há muito e já não respiram, mas continuam pertença e tesouro da República; retretes que fediam, camas que gemiam, colchões sem edredões; passeios de tabuinhas cruzados por milhões de viagens nos dois sentidos e sem sentido; arame farpado com bicos que ameaçavam rasgar a carne aos que queriam entrar, mas também dos que queriam sair; holofotes com luz, sem luz, antenas, bombas de água que nos bombeavam a paciência, geradores que muitas vezes trabalhavam; câmaras frigoríficas a funcionar, avariadas, inutilizadas, obsoletas, mas ainda zelosamente à carga, não fosse desertarem para as bandas do inimigo; camiões, unimogs, jipes, uns a andar, outros parados, vandalizados, canibalizados; uma prisão com telhado de capim, paredes de barro (espesso…!) e grades de vento; areia, muita areia, pedrinhas pintadas de branco que faziam de ruas que não levavam a lado nenhum e davam uma ilusão de ordem que apontava um caminho que não existia; uma taberna travestida com o eufemismo de cantina; bidões de gasóleo, cunhetes de munições contadas caixinha a caixinha, cunhetes de cerveja contadas na garganta duas a duas; janelas com rede mosquiteira, quartos com mosquitos, panelas de 50 litros e tachos de 30 que tresandam a um aroma de gordura militar que se esvai três dias depois da fome nos ter dizimado as resistências do olfacto e o último furo do cinto; um Chiado (vazio) onde em época alta se pode encontrar o último grito de sabão azul cortado em fatia fina com faca de queijo; um clima variado (de 45º a – 3º), noites escuras, de solidão, de desespero, de medo, blenorragias, pagas em moeda corrente ou géneros de primeira necessidade; (“… furrié é bom p’ra mim; furrié dá sapato, dá pano, dá dinhêro p’ra comprá cérvêja lá nos cantina…”); paludismos distribuídos gratuitamente a febres de 41º repartidas por 15 dias de férias em cama fresca de abundante suor; vacinas contra a mosca do sono (1cm3 por cada 10 kg inoculados por agulhas de 8cm enterradas na alva nádega sem dó nem piedade); medicamentos, para as doenças e para afugentar o medo das balas; um milhar de bugigangas agrupadas em pacotes de função, outro milhar dividido em função de pacotes, ainda um outro sem pacote nem função, e, por fim..., um kimbo com gente viva dentro, porque se mexia; uma bandeira num mastro altaneiro que se esfalfa todos os dias para afirmar a nossa autoridade naquele lugar e uma guerra; uma guerra que começa à porta de armas e termina nas margens de um rio Cuando majestoso e indiferente, que nos separa da soberania do povo do lado de lá, mas que os do kimbo não entendem porque os apartam dos família do outro lado de um rio sem paredes nem muralhas, feito apenas de água que corre límpida e sem raivas em ambas as margens.

Ficam de fora, com o consentimento das NEP’s (normas da coisa militar que nos orientavam em tudo, por vezes até os gestos e os desejos) depois de demorada consulta para esse efeito, a gata (a “chaninha” para os mais íntimos, companheira inseparável das noites de insónia em que nos achávamos a fazer de ratos para a gata brincar); uma cabra bebé, poupada a um tiro de G3 num intervalo da guerra, passando a fazer parte da carga da Companhia (até que um dia a fome ditasse um outro destino) e… o Dango (depois Dango Cabrita), a peça de guerra mais representativa que foi possível achar, depois de capturada ao inimigo nas terras do Cuando-Cubango.

Tudo contado, conferido e entregue, soa um batuque fúnebre que carpirá noite dentro uma dor cíclica de perder quase para sempre, e de uma só vez, um amontoado de amigos trazidos pela guerra e pela guerra levados.

Tropa matchiririca parte amanhã bem cedo…”

Pedro Cabrita

terça-feira, 10 de março de 2009

Um tiro na noite

Não fui um militar convicto. As fardas, a obediência cega, mesmo a ordens sem sentido, nunca foram coisas que casassem com a minha maneira de ser. Cumpria as regras. Afinal, estava ali de passagem e criar problemas não me parecia uma atitude inteligente. Particularmente detestável foi o tempo de instrução, não obstante considerar que era sempre útil aprender fosse o que fosse. Dizia o meu pai, copiando um dito popular, que o saber não ocupa lugar. Assim, captava os ensinamentos que outros transmitiam, dando especial atenção a tudo o que considerava poder vir a ser-me útil.
Respeito todos aqueles que, com honestidade, competência e alguma humildade, procuraram desempenhar o papel em que tinham sido investidos, mas irritava-me particularmente o ar autoritário e a atitude de alguns instrutores que, lá do alto do seu efémero pedestal, ensaiando uma pose bacoca de lentes que não eram, soltavam balelas e trivialidades com ares de bazófia, arrogando-se em mestres de técnicas e estratégias de uma guerra onde nunca tinham estado.
Aprendemos assim as teorias do preparar e reagir a uma emboscada, dos truques da queda na máscara e outras manobras de defesa e ataque, passando-se depois à sua aplicação prática. Os ensaios decorriam no terreno mais à mão, escolhendo-se o cenário mais adequado para repetir vezes sem conta as cambalhotas e as quedas na máscara, caindo de joelhos, ao mesmo tempo que se deixava tombar o corpo, de forma a ficar exactamente por detrás da moita (a máscara). Frequentemente acertava-se com um joelho numa pedra, a coronha da G3 partia-se, caía-se em cima da máscara ou ficávamos perigosamente afastados da dita. Se a queda corria bem, vinha a seguir a atrapalhação com a arma. Não se encontrava posição, a mira ficava fora da vista, não se sabia para onde apontar e normalmente não se conseguia descortinar o inimigo.
- Seus lerdos
Berrava o instrutor.
- Se fosse a sério, com essa lentidão, já estavam todos mortos.
Sentenciava.
Felizmente, nesta guerra de brincar, não era preciso disparar, pelo menos com bala real. Lembro-me que, certa vez, um alferes, pequenino, com ares de atleta e postura de guerreiro, quis fazer uma demonstração. Carregou a G3 com munições de salva, tomou pose de ataque, atirou-se para o chão via cambalhota em frente seguida de uma meia queda na máscara e começou a rebolar para um lado e para o outro, como se evitasse ser atingido pelas balas do inimigo imaginário, ao mesmo tempo que disparava sempre que entendia tê-lo na mira.
Assisti boquiaberto àquela cena. Tenho a certeza que em momento algum, o destemido militar sabia para onde estava a disparar. Se a arma estivesse carregada com bala real, tinha acertado em si mesmo umas duas ou três vezes e nenhuma, no que quer que pudesse ser considerado inimigo.
- Filmes a mais! Pensei.
Mas muita coisa valeu a pena, especialmente se tivermos em atenção que, quer quiséssemos quer não, estávamos a ser treinados para a guerra. A preparação física era uma delas, o manuseio das armas era outra, complementada com o conhecimento específico das suas manias e truques.
Detestava particularmente o salto do Unimog em andamento. Tinha que ser feito segurando a arma com as duas mãos. Ao atingir o solo, era projectado e nunca conseguia controlar a queda. Magoava-me quase sempre.
A verdade é que, durante os 26 meses que andei por terras africanas, nunca tive necessidade de fazer a queda na máscara, de dar uma cambalhota, rastejar ou outra qualquer das habilidades que pratiquei com tanto denodo. Excepção para o salto da viatura. Executei-o uma única vez. Uma excepção.
Assim, de entre as estratégias definidas para a missão da companhia, contava-se a importância em manter uma presença em toda a área. Tínhamos de nos tornar visíveis. Mostrar que não nos quedávamos pelo conforto do aquartelamento. Para além do mais, era importante manter as picadas abertas, reabrir as que as chuvas faziam desaparecer, abrir outras e mostrar à população a nossa presença.
Numa dessas missões, fui incumbido de percorrer um determinado itinerário. Comandaria um grupo de dez homens (dois condutores incluídos) montado em dois pequenos Unimogs 411. Importava principalmente cobrir a zona de picada que ligava o Demba ao Caxoxo. Havia-nos sido dito que a companhia anterior nunca por ali passara e era necessário verificar o estado da picada. Reavivá-la, se fosse caso disso.
O Demba era o último dos Kimbos no trajecto que vinha da Neriquinha e por isso, visitado amiúde pelas colunas de reabastecimento. O Caxoxo ficava no términus da picada que daqui seguia para o interior e só era visitado em missão de patrulhamento ou de passagem para as zonas de caça, mas normalmente seguindo a picada que o ligava directamente ao Rivungo, nunca por ali.
Os dois Unimogs, apelidados carinhosamente de “burros do mato”, venceram penosamente o percurso até ao Demba, numa marcha saltitante e desconfortável, com paragens frequentes para abastecer os radiadores, única forma de compensar o aquecimento excessivo dos motores.
O percurso até ao Caxoxo foi mais fácil. Com efeito, em alguns sítios a picada quase desaparecera. A areia reocupara os sulcos que a definiam, implicando um menor esforço das viaturas. Foi possível rodar em 2ª e em alguns troços conseguiu-se engrenar a terceira velocidade. A picada ia assim ficando para trás, como que reavivada. Contudo, seria preciso passar por ali mais vezes. O peso dos Unimogs não era suficiente para definir um sulco que não desaparecesse com a próxima chuvada.
A noite já se anunciava quando nos despedimos dos PSP’s do Caxoxo e iniciámos a última etapa, agora já de regresso a casa. Era uma picada que já conhecíamos, sinuosa, percorrendo uma área arborizada de terreno arenoso, bem visível na profundidade do sulco marcado pelos rodados das viaturas, impondo um andamento lento, por entre a densa noite sem luar que cobria totalmente a mata circundante.
As viaturas seguiam, uma atrás da outra com um razoável intervalo de segurança. Eu seguia na da frente, na que era conduzida pelo Comandos. Magro, mas de porte atlético, o Figueiredo ganhara a alcunha de o Comandos pelo facto de, na instrução, ter andado por Lamego, em cujo quartel se formavam as tropas especiais. Era um militar muito activo e sempre disponível para uma missão, especialmente se se tratasse de uma incursão de caça. Conduzia com mestria quer a corta mato quer pelas difíceis picadas de areia, conseguindo obter maior rendimento dos pequenos Unimogs, minimizando com oportunos aconchegos de travão, o desconforto dos contínuos saltos que a precária suspensão da viatura agravava.
Do segundo Unimog, apenas se divisava, lá mais atrás, a luz saltitante dos faróis, ora mais intensa ora desaparecendo ao sabor dos meandros caprichosos da picada.
Seguíamos assim descontraídos, embora, por hábito, as armas estivessem a postos, bem agarradas, com excepção da do condutor. A arma do Comandos seguia presa a um dispositivo para o efeito montado na frente, no local onde normalmente estaria o pára-brisas, que ali não se usava. Era um dispositivo engenhoso e ao alcance do condutor. Prendia a G3 sob pressão, bastando puxá-la com força para se soltar.
De repente, no meio da noite, inesperadamente, soou um tiro. Isolado, seco, perturbador. No segundo seguinte, ainda o som do disparo ecoava nos meus ouvidos, dei por mim deitado no chão, arma aperrada, apontando o negrume da noite. Olhei à volta. Todos estavam igualmente deitados no chão, em pose defensiva.
O Comandos também. De uma forma que nem o próprio conseguiu explicar depois, quase foi mais rápido que eu. Num ápice, apagou os faróis, desligou o motor, sacou a arma da geringonça e atirou-se para o chão. Tenho a certeza que se se tivesse tratado de um exercício, não teria sido tão rápido. Efectivamente, o instinto de preservação leva-nos a fazer coisas de que nunca pensaríamos ser capazes. Pelo menos nunca ensaiáramos nada parecido.
Perscrutámos em redor trespassando com o olhar a parede negra da noite à procura de qualquer movimento, sondando o silêncio à caça de um restolhar. Nada aconteceu. Nem um som ou movimento. Nada, ninguém. Decididamente não se tratava de uma emboscada.
- Será que atacaram a outra viatura? Pensei.
Procurámos na escuridão, projectando a vista através da espessa noite. Ao longe, o som familiar do motor do Unimog em esforço, acompanhava o risco de luz dos faróis dançando por entre as sombras do arvoredo. Aproximaram-se.
- A viatura foi abaixo?
Atreveu-se a perguntar um dos soldados.
- Não, ouvimos um tiro e desliguei o motor.
Respondeu o Comandos com simplicidade.
- Foram vocês que dispararam? Perguntei.
- Sim, vimos uma cabra do mato, mas não lhe acertámos.
Respondeu um deles.
Não me deu para ralhar. Afinal, era hábito atirar-se à caça. Na noite, os seus olhos pareciam pequenas luzinhas e se tivessem acertado, teríamos mais um petisco do Máquina em perspectiva - cabra do mato no forno.
Afinal, não fora uma emboscada, nenhum ataque ou acção de um qualquer sniper. Apenas um susto. Creio no entanto que a solitária cabrinha do mato terá apanhado um susto maior.
Enquanto se vencia a escassa meia hora de caminho que faltava até ao Rivungo, matutava sobre a nossa reacção. Uma tropa de elite não teria reagido melhor. Tanto joelho esfolado na instrução e afinal nada do que nos ensinaram foi ali aplicado. Lembro-me bem. Os Unimogs usados na instrução não possuíam aquele dispositivo para segurar a arma do condutor e nunca ninguém me disse que o motor deveria estar em silêncio. Creio que também nunca alguém se lembrou da conveniência em desligar faróis. É que, todos os exercícios haviam sido executados em plena luz do dia e o condutor não fazia parte deles.
Ainda assim, não posso censurar os autores dos manuais. Não me parece que os mesmos pudessem prever que uma cabra do mato seria capaz de pôr à prova o instinto de sobrevivência de um ser humano.