sábado, 16 de maio de 2009

Perdidos na noite

Decorria uma operação. Comandada pelo Silva, visava bater uma área distante, mesmo nos limites da zona operacional da companhia, lá bem para o interior, afastada de tudo e sem qualquer kimbo nas redondezas.
De certeza que ali não seria encontrada população. Ficava fora do limite de segurança definido. Qualquer elemento que ali fosse encontrado seria considerado guerrilheiro ou simpatizante. Não creio que a tropa tivesse por ali passado nos últimos anos. Na melhor das hipóteses talvez só os Flechas, que esses, nunca se sabia por onde andavam. Quando eram lançados numa operação, recebiam da tropa a ração de combate, enterravam-na à saída do kimbo e passavam uma semana ou mais em perseguição dos guerrilheiros. O resultado quase nunca se conhecia. Constava que os perseguiam dia e noite sem serem detectados até que, no momento mais oportuno, atacavam e não deixavam ninguém vivo para contar. Nunca consegui confirmar se isso era verdade. Fazia parte dos segredos da pide.
Verdade era andarem pelo mato durante semanas. Quando regressavam, desenterravam as latas da ração e entregavam-nas à família. Eram recrutados pela pide entre a população de etnia bosquimane, um povo tradicionalmente nómada e auto-suficiente, que sobrevivia naturalmente do que a mata dava. Aliás, contava-se que o ódio que tinham aos guerrilheiros, radicava no facto de a guerra lhes ter imposto uma vida sedentária, alterando-lhes os costumes, em total contradição com o seu ancestral modo de vida. E isso era visível nas cubatas que construíam. Mal atamancadas, com ar de provisório.
O plano para a missão do Silva previa a recolha do grupo três dias depois, num determinado local devidamente assinalado no mapa, exactamente onde findava o risco que definia a picada, sinal óbvio que dali para diante, apenas existia a profundeza da mata africana, virgem, intocada, como parte de um território imenso e selvagem.
A operação de resgate ficara à minha responsabilidade. Dispunha para isso de uma viatura Berliet, vinda de propósito da Neriquinha, já que, no Rivungo, apenas se dispunha de dois Unimogs, dos pequenos.
Ainda assim, dada a dimensão do grupo a recolher, era certo que apenas a Berliet não chegava. A ajuda veio da PSP que dispensou o seu velho Unimog, maior e em melhor estado que os nossos. Partimos por volta da meia-noite. O plano era fazer a viagem durante a noite, de forma a chegar ao local previsto pela manhã do dia seguinte.
Seguimos em direcção a sul, por um percurso já nosso conhecido, do qual saímos, algumas horas depois, virando à direita e penetrando numa zona desconhecida por uma picada pouco marcada, sumida em alguns troços, sinal de que há muito a tropa por ali não andava.
Chovia desalmadamente. O tempo arrefecera e as roupas molhadas aumentavam o desconforto. A noite, densa, enegrecida pela ausência de lua que parecia ter-se mudado para outras paragens, conferia ao ambiente um toque dramático. Só a picada, pouco batida, permitindo um andamento mais ou menos suave, poupava os ossos aos agressivos solavancos.
A berliet seguia na frente, por um troço de picada que corria pelo meio de uma chana não alagada. Atrás, a alguma distância, o pequeno Unimog da PSP saltitava sem se distanciar muito. Camuflada pela noite, uma pequena manada de palancas foi denunciada pela luminosidade dos faróis. Os seus olhos, quando atingidos pela luz, brilhavam tão intensamente no escuro que quase os podíamos contar. De noite, não podiam correr. Quando encadeados, ficavam estáticos e a luz intensa dos faróis baralhava-os.
Dois tiros certeiros deitaram por terra dois dos animais. Mandei avançar a berliet para os carregar. Contudo, a altura considerável da carroçaria e o seu peso exigiram maior força braçal, obrigando a que o unimog que aguardava imóvel na picada se aproximasse. Foram precisos seis homens para conseguir carregar os bichos.
Demos meia volta e avançámos de retorno à picada, procurando adivinhar a sua direcção. Esta, contudo, não aparecia. Mandei avançar mais um pouco. Nada.
Pensei:
- Será que aqui a picada desapareceu?
Podíamos perfeitamente estar num troço em que o rasto antigo tivesse desaparecido, engolido pela vegetação.
Questionei o guia. Mas a noite parecia tê-lo baralhado. Limitou-se a estender a mão e apontar uma direcção. Seguimos a indicação. Contudo, da picada, nada.
A chuva, intensa, continuava a cair, impiedosa, persistente, grossa, incomodativa.
Parámos. Raciocinámos. Não podia ser. Apenas nos tínhamos afastado uns escassos metros. A picada não podia estar tão longe. Era por ali, algures, perto.
Insisti junto do guia. Avançamos mais um pouco, sem rumo definido.
- Perdemo-nos! Concluí.
A luz dos faróis iluminou, por entre as bátegas grossas, um rasto de pneus, fresco.
- Finalmente! Pensei.
- Este deve ser o rasto que deixámos ao sair da picada para recolher a caça!
Deduzi, esperançoso. Agora era só segui-lo e logo estaríamos de novo no caminho certo.
Estranhei as árvores, tão perto. Quando avançámos pela chana, estavam mais afastadas. Mesmo assim, continuámos.
Rapidamente me apercebi que seguíamos em círculo. O rasto fora feito pouquíssimo tempo atrás. Que sensação estranha. Era como se andássemos atrás de nós mesmos, mas com o nós sempre a fugir, como o cão procurando alcançar a cauda.
Olhei o guia. Até então não soltara palavra. Estava nitidamente desorientado. Perdido.
A chuva aumentara de intensidade. Parecia que o céu se abriu e cismou de nos castigar, mantendo-nos bem encharcados. Sentia a água a escorrer pelas costas. Entrava abundantemente pela gola do camuflado, por debaixo da aba do quico. O poncho deixou de funcionar como impermeável. Apenas nos mantinha quentes.
- Dormimos aqui.
Decidi.
- Continuar nestas condições pode significar estarmo-nos a embrenhar cada vez mais na mata ... andar sem rumo.
Justifiquei.
Cada um se aconchegou onde pôde, procurando abrigo da chuva. Uns inutilmente debaixo da berliet, já que a carroçaria esburacada não oferecia protecção. Açoitado pelas bátegas intensas, sentei-me encostado a uma árvore procurando minimizar o efeito do dilúvio. Inútil. Acabei por me esticar ao comprido no pequeno declive formado pelo terreno à volta do tronco. Dada a inclinação, a água escorria livremente por debaixo do corpo. Sempre era melhor que dormir numa poça.
Por estranho que possa parecer, adormeci.
Acordei pouco depois. O dia nascia por entre os ramos das árvores. Parara de chover, sinal que dentro de pouco tempo os abrasadores raios solares que sistematicamente se seguiam a grandes borrascas, secariam a roupa, a pele, a boca, a mata, tudo.
As duas peças de caça, responsáveis pela situação, jaziam no fundo da berliet. O calor provavelmente se encarregaria de nos estragar o petisco. Tudo dependeria do tempo que levaríamos a chegar a casa. Abriram-se as palancas e retiraram-se as vísceras. Retardaria a decomposição e durariam mais tempo.
Com o romper da aurora o guia encontrou rapidamente o seu rumo. Afinal apenas estávamos a cinco minutos da picada. Ali tão perto, porém tão longe. Afastada da nossa vista pela escuridão, de nada valeu o estar ali ao lado.
Retomámos o caminho, agora mais endurecido pela chuva e liberto da esgotante e incomodativa poeira, o que permitiu aumentar a velocidade. Chegámos ao destino mais cedo do que esperávamos. A picada foi-se sumindo progressivamente até desaparecer como se fosse água de riacho em areias desérticas.
Conferia com o mapa, deveria ser ali o ponto de encontro.
Mas o Silva não estava. Ninguém estava à nossa espera.
- Será que chegámos muito cedo? Alvitrou alguém.
Mandei avançar mais um pouco, a picada podia ter desaparecido ali mas continuar um pouco mais à frente. Avançámos mais dois quilómetros seguindo a direcção que presumivelmente seria a continuação da picada. Mas nada. Quem a marcou (as picadas não se constroem) ficara-se mesmo por ali. Dali para a frente nunca ninguém passara, certamente.
Esperámos.
- Pode ser que venham a caminho.
Mas nada. Nem sinal. Tentámos o rádio. Sintonizou-se a frequência. Como resposta apenas o irritante barulho de frigideira ao lume.
E agora?
Tentámos o contacto com a base. Não conseguimos ligação. Provavelmente era distância a mais para o moderno Racal TR 28. Aos insistentes “base, base, charlie chama” apenas se obtinha como resposta, o silêncio.
Que fazer? Esperar? Regressar sem o pessoal?
- Será que o doido do Silva levou a missão para além do previsto?
- Se calhar, foram atacados e na sequência da escaramuça, perderam-se.
Resmungou alguém.
- Não, perdidos não!
Lembrei que, com um guia como o velho António, ninguém se perdia. Era homem de confiança e que conhecia a região como a palma da sua mão.
O meio-dia aproximava-se. Conferenciámos. Esperar mais era inútil. Pura perda de tempo.
Iniciou-se o regresso ainda com a esperança que o António levasse o grupo até à picada que nos trouxera ali. Se assim fosse, encontrá-los-íamos pelo caminho. A hipótese fez-nos acelerar a marcha com a ajuda do terreno pouco batido.
Mas nada. Do Silva e do seu grupo não se encontrou sinal. Voltámos ao Rivungo de mãos a abanar.
E agora?
O Alferes Fausto contactou a Neriquinha. Chamar a Força Aérea para a busca era uma hipótese.
Que não. Não se justificava. Ainda era cedo para isso.
Era preferível seguir outra estratégia. Voltar ao local foi a opção
Resultou, o grupo foi encontrado já na picada nossa conhecida, muito acima do local inicialmente combinado. Provavelmente se eu tivesse por ali ficado mais umas horas, tê-los-ia encontrado no caminho de regresso.
O Silva, de facto, por razões que desconheço, avançou mais no terreno do que o previsto. O António, conhecedor da região, concluiu ser preferível progredir para a bifurcação das picadas, mais a norte, já em direcção ao Rivungo e em sentido contrário ao do planeado. Caminhar para o local previamente definido, seria voltar para trás.
Falhara o timing e a bateria do TR 28 que, ao pifar, inviabilizou a comunicação.
Na chegada ao Rivungo o Silva não culpava ninguém. Para ele tudo correra normalmente. Apenas um pequeno percalço deixara os seus homens à beira do esgotamento e com os cantis vazios. Salvara-os as fortes chuvadas que possibilitaram matar a sede com recurso a palhinhas feitas de capim, por onde sorviam a água que se acumulava aqui e ali.
Olhei para o António.
- Então Homem! Pensei que se tivesse perdido!
- Não Furrié, isso comigo nunca aconteceria.
Respondeu, com um ar muito sério.
Confidenciou-me depois, como se fosse um segredo, que seria incapaz de pôr em risco a vida dos seus amigos.
Recordo o velho António como um homem bom. Alguém para quem se olha como se fosse um pai. Alguém em quem se confia. Cegamente.
Não. Com ele, certamente ninguém se podia perder.
Quanto às duas palancas, foi um festim para a população. Para quem estava habituado a secar a carne ao sol, eram mantimentos frescos.
Só a tropa não se atreveu a provar.

2 comentários:

bruno cardoso disse...

Está na altura de pegarem nas fitas que estão (ou estavam) lá em casa da avó e tentarem ouvir.

Podem conseguir encontrar ainda coisas giras, apesar dos anos pode ser que ainda consigam ouvir alguma coisa.

Anónimo disse...

As reproduções de texto do livro A GUERRA e a SEDE,que li retratam o que fielmente o que me foi dado observar in-loc, lá onde o mundo parecia acabar e por outro lado se tornava infinito.
A experiência que os homens da minha companhia (610) ali viveram apesar da ausência de Guerra (1965/66=inicio do ano,não foi fácil dado o isolamento violento, pior que teatro de Guerra, que ali vivemos.
Lembro que estivemos 16 meses no CABEÇO DA VELHA, extremo norte, linha de fronteira (Noqui)e por força de constante actividade no combate à guerrilha da UPA, suportamos muito melhor do que na N´riquinha os 6 meses ali passados.
Foram evaquados dois elementos que não suportaram, (PASSARAM-SE) como modernamente se diz e nem em Luanda ficaram, tal era o estado degradado da sua saúde psíquica.
Apesar de tudo sinto um desejo enorme de lá voltar, sei que é quase impossível, para reviver melhor o fascínio que aquela Zona exerceu sobre mim.
Tenho visitado Angola desde 2003 e já me desloquei à GABELA, ao HUAMBO, Porto AMBOIM, Sumbe e também às MABUBAS, local que vos é muito "caro" com visita ao Santoário do CAXITO e às ruinas da Fazenda Tentativa, que conheci bem noutro tempo e faz pena rever agora.
Enfim coisas que o novo tempo trouxe, mesmo que não tenha sido bom, no dizer de elementos da população com quem falei.
Tudo irá no entanto melhorar, tenho a certeza, nestes tempos novos.
Um abraço.
mcr