segunda-feira, 1 de março de 2010

Saudades de mulher branca

Se há algo de que um homem sente saudades é de mulher. Especialmente se acabou de completar 20 anos e para mais, sendo tropa. Nestas circunstâncias, mulher é coisa que, se não se tem à mão, vira obsessão.
Se está próxima e se sente a falta, força-se o encontro, mitiga-se o desejo e a saudade não chega a aparecer. Outra coisa é ser obrigado a abandonar aquela que escolhemos (ainda por cima linda) e ser levado para o outro lado do mundo. Sem qualquer hipótese de reencontro, desejar o que deixámos para trás ganha outra dimensão.
Mas quando, para além de tudo isso, somos relegados para o cantinho mais remoto do fim do mundo, como foi o caso da Neriquinha, os desejos explodem, multiplicam-se, moem o juízo e até doem, mesmo aos mais insensíveis. E garanto que só quem passou por isso sabe verdadeiramente o que é.
Ao fim de um mês a calcorrear as areias do Cuando Cubango, qualquer burra de saias, mesmo daquelas que se parecem com uma bota da tropa, começa a parecer-se com algo susceptível de despertar secretos instintos lascivos.
Com o passar do tempo, as mulheres da população, que nada deviam à beleza, pelo menos a beleza a que estávamos habituados, começam a ter graça, não obstante a pele áspera e o cabelo tipo esfregão, para não falar do cheiro característico, capaz de anular apetites insaciados. Mas, como quando se tem fome, até pão bolorento se come, os kafecos (mulher adolescente) eram mesmo a única alternativa possível, se bem que isso obrigasse a uma prévia preparação com uma parafernália de pomadas, unguentos e anti-inflamatórios contra a praga de doenças sexualmente transmissíveis que por ali grassavam, passando obrigatoriamente, após a visita, por um demorado banho purificador.
A máxima era, cautelas e caldas de galinha nunca são de mais e ninguém queria ter de ouvir as recriminações do Dr. Lacerda:
- Eu não te disse para teres cuidado! Da próxima vez que me apareceres assim, dou-te uma porrada.
O desejo de acariciar uma pele branca e macia e enterrar as mãos em cabelos sedosos tornava-se obsessivo. Aos poucos, a imagem que se procurava reter da amada deixada no puto, ia-se endeusando, virava miragem e ganhava foros de beleza extrema, quase sobrenatural.
Cada carta recebida era lida e relida. Procuravam-se cheiros que a longa viagem da missiva dissipara. Ansiava-se por uma fotografia recente que reavivasse a memória e fizesse relembrar os contornos, as curvas, os meneios. Esperava-se, enfim, que nos trouxesse de novo o imaginário do contacto impossível, da voz sensual ... eu sei lá …!!! Sabem que havia quem recebesse cassetes gravadas?
Na verdade, tudo isso só acentuava o desejo do reencontro, contribuindo para ressacas afogadas nuns golos de whisky, quando havia.
Era um facto, o desejo de mulher branca era algo que, creio, todos sentiram intensamente. Só que uns conseguiam disfarçar a falta enquanto outros a publicitavam.
- Só gostava de ver uma … nem que fosse de longe!
Confessava-se, com nostalgia evidente.
De facto, ao fim de meia dúzia de meses, mulher branca estava para nós como algo de que se ouvira falar, como se apenas a tivéssemos visto uma vez, em sonhos, mas nunca ao vivo. Olhar a fotografia era como se olhássemos para a caderneta de cromos de estrelas de cinema procurando imaginar como seriam em carne e osso.
Lembro-me que, nove meses passados, acabado de chegar à cidade do Luso, de passagem para Luanda a caminho das férias, ia sendo atropelado no meio da rua ao ficar especado, seguindo com olhares extasiados a primeira mulher branca que via ao fim de tanto tempo de isolamento. É verdade que também contribuiu o facto de já me ter desabituado do trânsito. Na Neriquinha, não havia ruas ou estradas, nem trânsito nem automóveis, já que as duas ou três berliets e os poucos unimogs eram como gota no oceano daquela savana imensa atravessada aqui e ali por picadas irregulares.
Não foi por acaso que ao fim de muitos meses me decidi a gastar uma pipa de massa e fazer uma viagem quase interminável até Lisboa, para gozar o mês de férias a que tinha direito. O pretexto era poder sair dali e rever a família. Na verdade, creio que se fosse só pela família (que certamente me perdoará o pecado) não teria metido pés a caminho.
A viagem era cara e durava uma semana, com paragens no Luso, Nova Lisboa e uma eternidade em Luanda para cumprir um conjunto de formalidades militares no Quartel General e perante um paspalho dum Sargento-Ajudante que tinha a missão de controlar as licenças, aproveitando o ensejo para controlar também o atavio. Para lidar com aquele exemplar de militar estúpido, era preciso cuidado. A probabilidade de não se gozar as férias e termos de regressar à Neriquinha, não era hipótese a pôr de parte.
Na Verdade e bem pensadas as coisas, o que me empurrou para fora da Neriquinha foi o desejo incontido de acariciar a pele aveludada e os cabelos sedosos que deixara no Cais da Rocha à partida de Lisboa. O desejo de sentir de novo o cheiro e o hálito fresco de mulher nem me deixou pensar duas vezes e foi-me tirando o sono à medida que a data da partida se aproximava. Era como se quisesse confirmar que, afinal, ela existia, era real, de carne e osso e que eu podia tocar-lhe.
Foi sol de pouca dura. As férias passaram num ápice e em pouco mais de um nada estava de regresso à Neriquinha, com as saudades de novo a atormentar-me os sentidos.
Certo dia, um avião militar, proveniente de Luanda e tendo como destino final a base de Henrique Carvalho, apareceu nos ares da Neriquinha. Avariara-se um motor e já voava à algum tempo apenas com o outro a funcionar. Não sendo aconselhável ir mais longe aterrou ali mesmo. Afinal, a nossa pista, de terra empoeirada, era um AR (Aeródromo de Recurso).
Para nossa surpresa, o Dakota vinha praticamente lotado com militares da Força Aérea e respectivas famílias. Aliás eram mais as famílias que se dirigiam a Henrique Carvalho para aí se juntarem aos respectivos maridos, na sua maioria oficiais da força aérea.
Quando se abriu a porta do Dakota, que se imobilizara na pista em frente à porta de armas, a surpresa foi total.
Uma a uma foram saindo mulheres. Primeiro uma, depois outra e mais outra e ainda outra. Ao todo, quase uma dúzia. Bem vestidas, penteadas, cheirosas e brancas meu Deus…!!! Todas elas..!!! Umas louras, outras morenas, até ruivas havia. Usavam sapatos que se enterravam na poeira sujando os pés delicados, que por ali não havia asfalto … nem calçada. Sapatos eram coisas que as mulheres da Neriquinha desconheciam, até porque não havia modelos que se adequassem àqueles pés.
Foi um corrupio. O pessoal abandonou os seus afazeres, aperaltou-se e aproximou-se. Uns mais de perto, outros mais ao longe, com respeito, sem alarido, mas com um desejo impossível de conter: ver mulheres brancas … e tão bonitas que elas eram. De repente, as mulheres ganguelas e até as kamachis, estas mais apresentáveis que aquelas, voltaram a ser tão feias quanto as acháramos à chegada.
Foi um dia memorável. Dentro do possível fizeram-se as honras da casa oferecendo o pouco que se dispunha: uns assentos junto à messe para as visitas se sentarem, uns refrescos e muita conversa, já que um passeio turístico pelo local era coisa impensável. As senhoras não deveriam estar interessadas e o calçado que usavam não o permitiria. Por outro lado, não havia nada para ver, a não ser que se quisesse mostrar o despojamento daquele nosso mundo, coisa que nem nos passou pela cabeça. Já estávamos habituados demais ao local para achar que isso era importante.
Entretanto, o pessoal, numa atitude de basbaque, ia rondando. Feromonas à solta, provocadoras, contaminavam o ar arrancando suspiros aqui e ali. Uns faziam comentários em surdina, outros apenas olhavam em silêncio. Palavrão foi coisa que desapareceu de repente. Falava-se pouco, não fosse sair alguma inconveniência, algo que pudesse ferir ouvidos tão delicados, como decerto seriam os de senhoras tão bem apresentadas.
Creio que por algum tempo até a segurança foi descurada. Não ponho de parte a possibilidade de os sentinelas terem abandonado o posto, nem que fosse apenas pelo tempo necessário para deitarem uma olhadela.
O súbito aumento populacional daquele bocado de savana delimitado por arame farpado foi de pouca duração. Pouco tempo decorreu, pareceu-nos, até que um outro avião aterrou na pista e recolheu as ilustres visitantes, levantando voo no meio de uma nuvem de pó em direcção a norte até desaparecer, diluído no azul intenso do céu.
Na Neriquinha apenas ficou o Dakota imóvel e silencioso e uma centena e meia de homens com água na boca, tecendo comentários sobre a beleza que, com olhares gulosos, acabavam de desfrutar.
- Vistes aquela loura…? A de blusa cor-de-rosa.
Perguntava um ao parceiro do lado.
- Sim, mas a morena, a de saia azul, era bem melhor. Viste as pernas dela?
Respondeu o interlocutor, procurando a concordância do outro sobre o pormenor dos membros inferiores da senhora.
- Cá para mim eram todas a estrear!
Sentenciou alarvemente o atrevido do costume.
O avião avariado, jazendo na pista, indefeso, obrigou a um reforço das sentinelas, pelo menos durante as noites que se seguiram e contribuiu para manter a animação por mais uns tempos. Com efeito, no dia seguinte, chegou um Nord Atlas que ali deixou um motor novo e uma equipa de mecânicos, que levou mais de uma semana a retirar o motor avariado e a montar o novo, garantindo um corrupio de curiosos à sua volta seguindo com interesse o desenrolar dos trabalhos.
Finalmente, com força renovada e depois de alguns ensaios e dois voos experimentais, o Dakota disse adeus à Neriquinha, deixando por uns tempos um sabor nostálgico.
Creio que foi a primeira e talvez a única vez que por ali foram vistas mulheres brancas. Para a maioria do pessoal da 3441, foi a única oportunidade, em dezoito meses, de poderem apreciar coisa tão desejada, ainda que apenas de longe e sem lhe poderem tocar. Nem sequer cheirar.
Ficaram apenas suspiros … muitos.

5 comentários:

Pedro Cabrita disse...

Transcrevo, com a devida vénia, o comentário do nosso companheiro Aranha, que quis intervir e fê-lo através do meu blogue:

O vosso Blog é o máximo! Farto-me de rir/chorar ao recordar imagens e descrições. O Cardoso tem uma capacidade descritiva óptima e uma iconografia muito rica. Não é escritor, mas é um bom jornalista. Também gostei da discussão sobre o A. Lobo Antunes. Antes de escritor foi psiquiatra(!)
Um grande abraço. E uma Nocal à vossa saúde.

Eduardo Brito Aranha

Pedro Cabrita disse...

Ao Aranha

Fica a renovação do convite à participação neste espaço.

Aliás, esse desafio foi lançado desde o primeiro dia.

Ficamos pois a aguardar.

P. Cabrita

Gabriel Costa disse...

Uma história como complemento:

O destacamento de Fotocine do Batalhão, com muita irregularidade, passava uns filmes antiquíssimos e sem qualquer interesse, mas sempre com uma preocupação: que não houvesse cenas íntimas e, se possível, com muitos homens e poucas mulheres.
Um dia, calhou-nos uma xaropada chamada "Malrlow-Detective Privado" (rodado com o argumento no livro homónimo de Carter Browne, publicado em Portugal pela velha colecção de livros policial-eróticos "RIFIFI").
Ora, na ausência de mulheres que se vissem na tela, a assistência, sentada no chão junto á Cantina, deu conta que, ás tantas, o herói, que viajava num descapotável americano dos anos 50, circulava junto a uma praia do Pacífico. Ao longe, em imagens rápidas e quase imperceptíveis, estavam umas sereias estendidas na areia.
Aí, o pessoal não se conteve e, a poder de gritos e assobios, obrigou o operador da máquina a voltar atrás 2 ou 3 vezes na esperança de que o mulherio se tornasse mais visível.
Em vão! As partes com cenas mais picantes, haviam sido cortadas e o pessoal não viu mulheres...mas sonhou melhor nessa noite!

Egidio Cardoso disse...

O Aranha tem várias coisas que interessam a este blogue:
Uma memória inigualável, sentido de humor, características de escritor para as passar a escrito e uma boa colecção de slides.
Oh Aranha! Se não se importar, ceda-me os seus slides por uma semana.
Prometo devolvê-los intactos acompanhados de um CD oferta com todas as imagens digitalizadas.
Sabe, olhando as fotografias, lembrar-me-ia de episódios que dariam histórias para contar, para além de as ilustrar.
Muitos dos elogios que tenho recebido dão conta da importância das imagens inseridas no texto.
Faço minhas as palavras do Cabrita, chegue-se à frente.
Um abraço
E.C.

Anónimo disse...

A experiência de sentimentos e emoções aqui retratadas com uma invulgar sensibilidade e capacidade no relatar momentos de vidas, seguramente escapará a qualquer indivíduo que não tenha vivido experiências semelhantes. Provoca um enorme prazer leituras como estas que se bebem de um só folgo. Quantos autores publicados não possuem esta capacidade… Parabéns Egídio.

Ainda assim deixo aqui uma reivindicação: Não é justo para o leitor ser deixado à porta do mês de férias com a expectativa do que é sentir e viver de novo no mundo civilizado após as experiências relatadas. Seria justo comungares com os leitores as sensações de voltar a esse mundo e depois ter de o deixar um mês depois.

Um abraço

José António Cardoso