sexta-feira, 16 de julho de 2010

Saída para a mata

A saída para a mata, implicava um quase ritual de preparação.
Eram as últimas instruções, a revisão do plano, a verificação do equipamento, do armamento, o arrumo das latas da ração de combate e finalmente subir para as berliets e partir.
Estas imagens recordam um desses momentos. Neste caso, o 4º pelotão partia para mais uma missão. Não recordo o nome da maioria e até algumas caras já me parecem estranhas, mas reconheço o Alferes Aranha, o furriel Mota, o cabo enfermeiro Chiquinho e ainda o soldado Duarte que, bem se pode dizer, foi o responsável pelo início dos reencontros anuais da companhia que se mantêm há muitos anos.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A resistência de um GE

Na guerra colonial em qualquer dos territórios das antigas províncias ultramarinas, o exército português contou sempre com o apoio de grupos recrutados entre a população nativa.
O objectivo era óbvio. Envolver as populações no esforço de guerra e dar-lhes importância eram formas de arregimentar homens que, a não ser assim, poderiam engrossar as hostes dos guerrilheiros.
Para nós, que andávamos no terreno, a importância destes grupos não se esgotava na vertente política e de acção psicológica; era mais do que isso. Não sendo militares formados com o rigor de um exército, apresentavam fragilidades ao nível operacional, mas constituíam uma mais valia importante, designadamente porque conheciam o terreno, movimentavam-se na mata com desenvoltura por largos dias e eram quase auto-suficientes. Conhecedores dos segredos da savana, sabiam onde arranjar alimento, quase dispensando a ração de combate e eram capazes de, com muito menos esforço, vencer distâncias em menos de metade do tempo do que as nossas tropas.
Na verdade, a sua existência era primordial. Poupavam-nos a uma parte das operações esgotantes, aliviando o nosso esforço e constituíam guias de confiança no meio de um terreno isento de pontos de referência onde era fácil perdermo-nos.
Aos elementos destes grupos, denominados GE’s, (Grupos Especiais) era atribuído um ordenado, disponibilizado fardamento e entregue armamento o que, naqueles locais, constituía por si só, razão suficiente para convencer elementos da população a integrarem estas tropas por tempo indefinido.
O grupo da Neriquinha não era muito numeroso. No todo, talvez o equivalente a um pelotão, mas eram suficientes para levarem a cabo missões militares com alguma importância.
Fulai Monjuto era o seu comandante, incumbência que levava muito a sério, impondo aos seus homens disciplina e padrões de comportamento que considerava adequados a tropas. Para além disso, era pessoa de quem se gostava. Fiel ao seu ideal, optara pelo nosso lado por convicção própria, creio, e não porque um qualquer discurso mais bem elaborado o convencera. Acima de tudo era alguém em quem se podia confiar.
No outro lado da barricada um grupo de guerrilheiros movia-se entre território angolano e as suas estruturas de suporte na Zâmbia, atravessando a fronteira através de caminhos que cruzavam a chana do Cuando e que procurávamos controlar. Operavam algures na savana imensa da Quirongosa lá para os lados de Mavinga, em bases móveis suficientemente afastadas e difíceis de localizar. O seu comandante, dizia-se, dava pelo nome de Kuenho e constava que seria um irmão, ou meio-irmão, do Fulai.
Contudo esse parentesco nada representava em termos de afinidade ou afectividade. Por ali, os guerrilheiros consideravam os GE’s traidores à causa e falava-se do ódio visceral que nutriam uns pelos outros.
O Kuenho e os seus homens já tinham sido acossados por diversas vezes em operações levadas a cabo por grupos de comandos, chegando a constar que o seu comandante tinha sido abatido numa das incursões feita pelo capitão Vítor Alves quando comandou a Companhia da Neriquinha, um par de anos antes de nós. Mas não havia certezas de que isso fosse verdade.
Parece que o grupo se tornou mais activo do que seria de desejar, facto que terá determinado a preparação de uma grande operação visando controlar os seus movimentos e anular a operacionalidade que vinha manifestando.
Dessa demanda não conheço pormenores, já que as justificações para as operações e forma como eram preparadas ficavam sempre nos segredos dos gabinetes das altas patentes. A nós, apenas competia executá-las sem refilar e sem fazer perguntas e normalmente sem se saber ao que íamos.
A verdade é que foi preparada uma operação envolvendo parte significativa dos efectivos das companhias da Neriquinha e Mavinga incluindo os respectivos grupos de GE’s, operação levada a cabo com grande aparato e estratégia meticulosa de progressão no terreno que deveria bater parte da imensa savana da Quirongosa e um largo troço das margens do rio Toss. Assim, a força foi dividida em dois grupos: um, constituído pelos GE’s e outro, pelo conjunto do pessoal da 3441 e da companhia de Mavinga. O objectivo seria bater o máximo de área possível, encontrar infra-estruturas do inimigo, destruí-las e pelo caminho recolher indícios da sua actividade.
Parece que esse desiderato não foi atingido, já que nem sinais dos guerrilheiros, o que não constituía surpresa. Numa área tão imensa e incaracterística, tinham toda a vantagem a começar pela sua resistência passando pelo conhecimento do terreno e acabando nas suas aptidões inatas de subsistência e sobrevivência.
Mas não andavam longe. Pelos vistos resolveram ignorar a tropa e, sem se fazerem notar, seguir na peugada dos GE’s. Ou então a descontracção e excesso de confiança dos GE’s, talvez resultante dos muitos anos que levavam naquelas andanças sem que tivessem sofrido dissabores graves, deixava-os descontraídos, talvez de mais. Ao fim da tarde, aportaram à chana que ladeava o rio que por ali corria. Já o conheciam como um lugar aprazível, ideal para descansar e pernoitar.
Largaram os equipamentos por aqui e por ali, abandonaram as armas pelo chão ou encostadas às árvores, descalçaram-se, despiram-se e correram para a fresquidão da água para se livrarem do pó que se colara ao suor do corpo.
O grupo do Kuenho esperou pela melhor oportunidade e no exacto momento em que a descontracção era total, despejaram todo o seu poder de fogo sobre os GE’s que, estando em campo aberto e sem o que quer que seja onde se pudessem proteger, foram caindo um após outro sob o fogo intenso do inimigo sem a mínima oportunidade de chegarem às armas abandonadas a escassos metros.
A tarde calma tornou-se rapidamente num inferno cruzado por balas vindas de todos os lados contra GE’s seminus e descontraídos. Encurralados, desorientados e desarmados, procuraram a fuga sem sentido ou lógica por entre a impiedosa metralha. Correram pela mata sem olhar para trás. Os primeiros chegaram a Mavinga algumas horas depois, sem roupa, sem ânimo, sem nada, quase mortos de cansaço, derrotados até ao mais profundo dos seus sentimentos. Para trás, prostrados no terreno, ficaram os corpos dos que não conseguiram escapar.
No dia seguinte, uma missão de resgate, com ajuda da força área, contou treze mortos. Quatro eram do grupo da Neriquinha entre os quais o do seu comandante. O corpo de Fulai Monjuto jazia, crivado de balas, muito mal tratado, a evidenciar a fúria, a raiva vingativa e o ajuste de contas dos seus conterrâneos que militavam no outro lado da barricada.
Mas havia um quinto elemento do grupo do Fulai. Seminu, ensanguentado, apresentava feridas de bala por quase todo o corpo. Pelos vistos nenhuma atingira um órgão vital. Inanimado terá sido dado como morto pelo inimigo. Sobre a madrugada, o frio do cacimbo despertou-o, mas estava demasiadamente ferido para se mover. Um helicóptero levou-o para Serpa Pinto, sem grandes esperanças. Na altura parecia impossível ainda estar vivo. Mas, contra todas as previsões, recuperou.
Falei com ele quando regressou à Neriquinha passada a fase da convalescença. Falava pouco. Como resposta às nossas perguntas apenas sorria e despia a camisa para mostrar as cicatrizes. Era impressionante a forma como o seu corpo ficou marcado. Mesmo que não tenha sido atingido num órgão vital, o que só por si parecia impossível, não era crível que um ser humano pudesse ter resistido a tanto. O GE tinha certamente uma estrelinha protectora ou então um anjo-da-guarda muito influente.
Quanto ao Kuenho, soube-se mais tarde que uma operação mais bem sucedida, levada a cabo já depois de termos saído do Cuando Cubango, logrou abatê-lo. Parece que hoje é um herói angolano. Dizem que existem várias escolas e alguns monumentos que foram baptizados com o nome “Comandante Kuenho”. Creio que apenas o pessoal da 3441 se recorda do Fulai Monjuto. Boas recordações certamente. Contudo, nenhum se lembrará sequer onde foi sepultado. Onde quer que tenha sido, para lá ficou sem epitáfio, honrarias ou reconhecimento por parte da causa que serviu.