quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Neriquinha vista do céu

Temos algumas fotografias que mostram a Neriquinha vista de cima, uma delas pode ser vista aqui. Mas esta mostra a verdadeira dimensão do local onde vivemos durante dezoito longos meses.
Hoje, passados cerca de 38 anos, ainda consigo reconhecer cada recanto daquele que foi o nosso pequeno mundo.
Mas olhando, assim à distância do tempo, ainda me interrogo como foi possível ali viver durante tanto tempo, tão longe de tudo o que se assemelhasse a civilização.
A fotografia foi-nos oferecida pelo Fernando Simões, furriel de transmissões da companhia que nos rendeu na primavera de 1973, a C.Caç. 5012.
Obrigado Fernando.
Continue a visitar-nos e conte-nos algumas das coisas que se passaram depois de nós.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Caça

Durante a comissão na N'Riquinha, das coisas que mais me agradavam, uma delas era a caça. Largas dezenas de noites à caça, sem contar com os dias carregados de sol e chuva, permitiram-me passar o tempo de uma forma mais agradável e sem as chatices de estar fechado no quartel à espera do amanhã, que nunca mais chegava. O que eu queria era...rua!
Na verdade, tais surtidas, permitiram variar e aumentar as doses de carne a que cada um tinha direito. Palancas, (reais...que crime!) Nunces, Cabras do Mato, Gungas, Gnus, Caixotes e outras variedades de animais cujos nomes hoje me passam, serviram para ajudar nas contas do Furriel Vago-Mestre Morais e o 1º Sargento Pinto.
Uma vez, já nas Mabubas, na bacia da Barragem, saí à caça no barco, um Zebro com capacidade para uma dúzia de militares, que a Companhia tinha para patrulhar o Rio Dange. Com um civil, o Sr. Tomé, responsável pela Barragem das Mabubas, a farolinar, o Gasolina (encarregado de abastecer os motores e viaturas da SONEFE) com a bateria ao colo, o Lobato ao leme, o padeiro e o Zip no apoio, lá saímos ao cair da tarde.
Foi um dia de sorte: matei duas Pacaças enormes, com três tiros apenas.
O pior foi depois. Uma, a que estava à beirinha, foi carregada de imediato para dentro barco, com muita dificuldade, já que este tendia a afastar-se da margem em consequência dos empurrões ao bicho para galgar a amurada. A outra, porque se encontrava um pouco mais afastada e era maior, exigia que o barco ficasse meio apoiado em terra para facilitar o carregamento. Para isso, o melhor era dar-lhe alguma distância da margem e ganhar velocidade, colocando-o meio na água meio na terra. O pior é que, por debaixo da superfície da água e invisível aos nossos olhos, estava um tronco de árvore escondido onde a quilha do barco bateu com grande estrondo. Com aquela paragem violenta, para além de todos ficarmos estendidos no chão do Zebro, o Gasolina caiu à água, arrastando a bateria que tinha ao colo e que alimentava o farolim que nos permitia ver naquela escuridão. Desapareceu, por ali abaixo. O Sr. Tomé, sem largar o farolim da mão, acompanhou a descida lenta do Gasolina em direcção ao fundo e com o corpo já meio dentro da água, apanhou-o pelos cabelos e puxou-o, com a ajuda do Lobato, até ter a cabeça fora da água. Içámo-lo para dentro do barco e tudo se normalizou. O Gasolina, apesar da queda, nunca largou a bateria e nunca o farolim ficou sem energia. Foi o herói do dia!
Quanto às Pacaças: uma foi para a cozinha da Companhia e lá se foi comendo. A outra, derreteu-se numa farra no largo da casa do Capitão, com os civis das Mabubas.
Foi uma forma de homenagearmos a Esposa do Capitão Cabrita que, de férias na Metrópole, tinha ido passar uns dias a Angola.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O ESQUADRÃO

Estou convencido que, durante os mais de dezoito meses que a 3441 esteve na Neriquinha, devemos ter andado por locais que provavelmente nunca antes tinham sido pisados por brancos, fossem eles tropas ou civis.
O esquadrão foi um desses locais.
Não retenho exactamente como surgiu o nome, mas não andarei longe da verdade se disser que foi assim baptizado por ali ter sido localizada uma base inimiga enquadrada por um grupo de guerrilheiros. Esquadrão seria provavelmente a designação atribuída à formação, já que o termo não se enquadrava na estrutura do exército português.
Como é natural, não havia picada até lá e não teria sentido que houvesse. Normalmente as bases inimigas para além de móveis, estariam em locais tão distantes e inacessíveis que passariam despercebidas e por isso a salvo das investidas das nossas tropas.
De qualquer forma, a base foi detectada. Identificada a sua posição exacta logo foi preparada uma grande operação levada a cabo pela 3441 com o objectivo de desalojar os insurrectos e destruir as respectivas instalações. A operação, de considerável dimensão, implicou o envolvimento do grosso do efectivo da nossa companhia, incluindo mais de metade do meu pelotão então estacionado no Rivungo, um reforço da companhia de Mavinga e dois T6 da Força Aérea para o bombardeamento prévio.
Foi uma operação condimentada com episódios que marcaram aqueles que nela participaram, a começar pela autêntica aventura que foi o transporte até ás imediações do local, exigindo o necessário recurso a um guia que, conhecendo bem o trajecto, levou as berliets a corta-mato através de uma mata sem picadas ou caminhos e despida de pontos de referência.
Não participei nesta operação cabendo-me a menos ingrata tarefa de, com uma guarnição reduzida, garantir a segurança das nossas instalações do Rivungo já que o Capitão não quis dispensar o contributo do alferes Fausto.
Mas contaram-me que o assalto foi comandado pelo alferes Torres, à frente de um grupo de voluntários onde se incluía o doido do furriel Silva. Consta que, dada a ordem de ataque, após o bombardeamento prévio pelos dois T6, o grupo de assalto avançou decidido contra a base inimiga. O Silva aperrou a G3, descavilhou uma granada com os dentes e desatou a correr como um doido gritando:
-Ao ataque!!
Por sorte, os guerrilheiros não teriam condições de nos fazer frente. A posição estratégica do acampamento ter-lhes-á permitido detectar a aproximação da tropa com antecedência e optaram por desaparecer das imediações sem deixar rasto ou qualquer dos equipamentos que pudessem ali ter. A verdade é que o grupo de assalto irrompeu por entre trincheiras vazias sem encontrar vivalma ou o que quer que lhes pudesse fazer frente.
Incendiaram as cubatas, destruíram o que havia para destruir, retirou-se a tropa e com ela toda a parafernália de guerra, ficando de novo o local no mais completo sossego.
Passaram-se meses sobre a grande operação. Importava agora certificarmo-nos que a base inimiga não voltara a ser ocupada e se fosse caso disso, desalojá-los de novo do local.
Para a tarefa, foram destacados dois grupos de combate: o meu, com o alferes Fausto à frente e o do Alferes Correia. Só que desta vez sem a necessidade de apoio da Força Aérea. Apenas duas berliets para o transporte.
Saímos da Neriquinha bem cedo apinhados sobre as carroçarias desconfortáveis das viaturas, em direcção às pontes do Rio Cúbia. Aí chegados, em vez de se voltar à esquerda pelo caminho que levava ao Rivungo, seguiu-se em frente penetrando bem no coração da Savana por uma picada ainda desconhecida para mim, atravessando matas e chanas, ora lavrando areia numa marcha lenta feita gincana por entre as árvores, ora enterrando-se nos troços pantanosos que bordejavam cursos de água alimentados pelas chuvas persistentes da época, largando-nos finalmente, longas horas depois, nas imediações do objectivo, mas a uma considerável distância de segurança. Por razões óbvias o resto do percurso teria de ser feito a pé, com todos os cuidados e carregando aos ombros armamento e munições onde se incluía um morteirete e as suas pesadas granadas difíceis de transportar.
Aproximámo-nos da orla da mata sem sair da camuflagem propiciada pelas árvores que bordejavam uma extensa chana que se estendia à nossa frente. Algures por ali corria o Rio Dima, designação inscrita no mapa mas cujo caudal não se divisava por entre o capim rasteiro. Na outra margem, um pouco mais a sul, escondido algures entre a mata, estaria o nosso objectivo.
Atravessar ali era impensável. Se a base inimiga estivesse de novo guarnecida, seríamos vistos à légua e bastaria fazer tiro ao alvo no meio do descampado da chana, a que acrescia o risco de nos enterrarmos no pântano formado pelo Dima, cujo caudal por mais fraco que fosse, por ali correria certamente embora não se visse onde.
Discutiu-se a melhor forma de atingir o outro lado sem sermos antecipadamente detectados. Consultando o mapa, dava para ver que o Dima era pouco extenso. A sua nascente não seria muito afastada, se bem que nascente fosse um termo demasiado pomposo para a maioria dos rios que rasgavam a savana de forma irregular e desordenada. Este seria certamente um daquelas cujo curso era alimentado pelas escorrências da água das chuvas que se infiltrava por entre as areias porosas. Era quase certo desaparecer parcialmente durante a época seca.
Fosse como fosse, a prudência aconselhava a contornar o descampado, caminhando para norte de forma a rodear a linha que limitava a chana. Avançámos procurando nunca sair da camuflagem que as árvores propiciavam, seguindo em direcção oposta ao nosso objectivo, numa caminhada que parecia não acabar. Afinal aquela linha de água tinha o seu início bem mais acima do que o mapa parecia supor.
Após contornada aquela espécie de nascente constituída pela meia-lua que iniciava a chana despida de árvores que definia os domínios do Rio Dima, descemos pela margem oposta, apenas parando muito perto do nosso objectivo, quando a noite já quase se instalara.
Acomodámo-nos o melhor possível sob o peso da proximidade da base inimiga e procurei adormecer atormentado pela dúvida sobre o que nos esperava. Teria o inimigo dado pela nossa aproximação? É verdade, que durante todo o tempo, não houve sinais do que quer que fosse que o pudesse confirmar, mas: e se estivessem à espera que adormecêssemos?
O pessoal espalhou-se o mais possível, sem contudo perder o contacto uns com os outros, no meio de um silêncio absoluto. As latas da ração foram abertas com mil cuidados, nem um tilintar se ouviu. Acendiam-se os cigarros à socapa e sorvia-se o fumo debaixo do poncho para que a chama não nos denunciasse.
O dia “D” amanheceu frio e húmido, com uma ligeira neblina que se manteve até o dia clarear. Iniciaram-se os preparativos, recapitularam-se os planos, foram dadas as últimas ordens e cada um tomou o seu lugar de acordo com a estratégia definida. O Silva, como de costume, oferecera-se para comandar o grupo de assalto, constituído por um punhado de homens que arregimentou.
Fiquei a vê-los à medida que avançavam pela mata, sem hesitação, como se soubessem exactamente para onde ir, desaparecendo rapidamente das nossas vistas confundindo-se com a vegetação em direcção ao objectivo camuflado algures por ali um pouco mais abaixo.
Posicionado estrategicamente, o restante efectivo aguardava o desenrolar da operação, pronto para entrar em acção assim que se ouvissem os primeiros tiros. Passaram-se alguns minutos que pareceram uma eternidade sem que se ouvisse o que quer que fosse. O silêncio marcava o compasso das batidas descontroladas do coração, acompanhadas de um mal disfarçado tremor aumentado pelo frio desagradável da manhã. O dia ainda não clareara totalmente e os corpos entorpecidos pela noite mal dormida ainda não tinham tido tempo de aquecer.
Mas nada aconteceu. Lá da frente vinha a informação de que o local estava tão deserto como o resto da mata em redor. O silêncio foi quebrado, os nervos serenaram, voltaram os sorrisos e ouviram-se desabafos aqui e ali. Descontraídos mas ainda assim com atenção a tudo o que nos rodeava, avançámos continuando a rodear o local não fosse estarem emboscados algures à nossa espera.
Mas não. Ninguém nos esperava, nem ali nem mais longe. Na verdade era bem visível que por ali não passara vivalma nos últimos meses. Olhei à volta. O local, instalado estrategicamente num ligeiro declive, distava uns quinhentos metros do perímetro da chana, escondido entre as árvores e suficientemente perto de uma grande lagoa de águas cristalinas. As trincheiras, se bem que parcialmente assoreadas pela areia solta, estavam distribuídas desordenadamente, mas de forma a tocaram os esqueletos das cubatas queimadas e dispersas pelo terreno. Constituíam de facto uma eficaz protecção, mesmo ali à mão.
Sentei-me sobre um tronco avaliando o local. Parecia-me estranho e de certa forma desnecessário o trabalho que tiveram em escavar aquelas valas feitas trincheiras. De facto, quando os atacámos da outra vez, debandaram com antecedência suficiente e nunca mais ali voltaram. Trabalho inútil, pensei. A não ser que apenas servissem como protecção de recurso em ataques de surpresa.
Olhei em volta e imaginei o Silva, meses antes, a correr por ali acima, feito doido, com a granada na mão e cavilha entre os dentes. Se tropeçasse ou fosse atingido, a explosão da granada seria inevitável e mataria alguns dos seus companheiros. Talvez por isso, desta vez, foi mais comedido na forma como avançou. Sem grande alarido, com cuidado mas, ainda assim, de forma decidida, como se fosse algo a que já estivesse habituado a fazer.
Saímos rapidamente dali. Permanecer seria arriscado. A posição era conhecida pelo inimigo e a possibilidade de um bombardeamento à distância não podia ser descurada.
Avançamos para sul, patrulhámos as margens do rio e procuraram-se possíveis sinais da presença dos guerrilheiros. Apenas se encontraram carreiros mas quase cobertos pelas ervas, sinal evidente que a sua utilização era nula ou então esporádica.
Parecia óbvio que o local fora totalmente abandonado. Provavelmente tinham como estratégia não voltar a ocupar instalações que tivessem sido identificados pela tropa. Se era essa a estratégia, revelavam inteligência. Da nossa parte, cumprimos a missão obrigando-os a procurar outro poiso, mais longe, ou mais bem camuflado. Contudo, ficou-me uma espécie de certeza de que todo o trabalho, todo o cuidado colocado na preparação da primeira operação e o retorno ao local meses depois, desalojou os guerrilheiros daquele local, mas provavelmente não causou qualquer embaraço na sua logística e capacidades de resistência.
Mais descontraídos, descansados e inebriados pela beleza agreste do local, encetámos o caminho de regresso ao ponto onde seríamos recolhidos pelas viaturas. Mas nunca seguindo pelo mesmo caminho, seria penoso demais. Atravessaríamos o Dima a direito, mesmo sem sabermos ainda se era possível o seu atravessamento ou não. Parecia que sim, já que naquele local apenas se via o capim rasteiro da chana. Contudo ainda nos estava reservada uma surpresa. Já quase perto da outra margem, aquela que pretendíamos alcançar, a chana plana e transitável deu lugar a uma zona totalmente alagada com uma profundidade de água considerável embora com largura não superior a dois metros e pouco. Afinal, os turras não escolheram o local à toa para a instalação da sua base. Sabiam bem que o atravessamento ali, a direito, era complicado e moroso. Chegar às imediações das improvisadas instalações, vindo do outro lado, implicava um percurso curto mas difícil de vencer ou um trajecto seco, mas longo e penoso. Quer se utilizasse um ou outro, facilmente seríamos detectados com considerável antecedência. A suficiente para decidirem se seria melhor fugir ou resistir. Foi certamente o que aconteceu da primeira vez.
A travessia naquele local, contudo, já bem perto do lado de cá, acabou por ser divertida, Arranjou-se um tronco que serviu como ponte molha-pés e alguns aproveitaram para se refrescarem, despindo-se, entrando na água e ajudando um a um na travessia. O pior veio depois. As sanguessugas, abundantes no lodaçal, agarram-se firmemente às nossas pernas, obrigando a um trabalho de paciência para as arrancar.
O regresso transformou-se numa viagem quase interminável. A chuva abundante e persistente não nos deu tréguas, arrefecendo os nossos corpos encharcados e permanentemente sacudidos pelas irregularidades do piso. Quando finalmente atingimos as já familiares pontes do Cúbia, não obstante ainda a cerca de um par de horas do aconchego da Neriquinha, a sensação de alívio era óbvia. Dali para a frente era caminho conhecido e em menos de um nada estaríamos de novo ao abrigo do arame farpado. Cada bocado das nossas vidas passado na mata, enfrentando intempéries, dormindo à chuva e ao relento, algures numa hostil terra de ninguém, contribuía cada vez mais para transformar a Neriquinha num sítio onde se podia viver. Quase aprazível.
Um duche, uma refeição quente e uma cama, eram um luxo quando comparados com o desconforto dos últimos quatro dias.