terça-feira, 14 de junho de 2011

"História de um combatente" - Joaquim de Sousa

As celebrações do 10 de Junho, por muito que o tempo passe e queiramos evitar, é um dia que nos marca pelo seu significado e, sobretudo - àqueles que foram mobilizados para a Guerra do Ultramar -, um dia de regresso ao passado. O Tempo - que nem sempre tem "tempo" de lavar as memórias de uma juventude sofrida - atira-nos, de chofre, com as marcas e os sentimentos que vivem ainda dentro de nós, e faz reviver os afectos nascidos durante os meses de convívio militar. O dia 10 de Junho tem o efeito de catárse que limpa os males da alma e serena, ciclicamente, os espíritos ainda inquietos de duas gerações de portugueses
Reli, este fim de semana, o livro do cabo da C. Caç. 3441, Joaquim de Sousa, já falecido, "Memória de um Combatente". É um livro em verso, longe dos circuitos de venda, edição da família, que pretendeu dessa forma, manter vivo o espírito de um homem bom, que não conseguia esquecer o passado e a juventude perdida nos confins de Angola. Entre as minhas notas de apoio ás memórias da C. Caç 3441, que cada vez mais se vão diluindo com os anos que passam à velocidade da luz, encontrei este comentário que enviei, em Junho de 2008, ao capitão Cabrita - autor de 2 livros sobre a sua/nossa passagem em Terras de Angola - e parceiro na feitura deste blog.


Caro Cabrita:

De vez em quando a vida abana à nossa frente uns farrapos afectivos que nos devolvem a capacidade de dar passos atrás no universo das nossas vidas. Foi o caso do livro do Joaquim Sousa. Não vem ao caso nem o léxico nem a sintaxe, que são o que são para um homem que tinha a formação que tinha. Conta, aqui, a sensibilidade e o amor que se ganha a uma terra que não é a nossa, numa missão que não devia ser nossa com fins que nunca deveriam ter sido os nossos. Mas, na roleta que nos atirou para África, isso já não conta, porque o tempo e a vida (que nos come o tempo de vida), se encarregaram de diluir o mau, e, criar à superfície das recordações da juventude, uma nata de saudades que continua a envolver-nos numa afectividade comum e estranha, com aquela terra.
Confesso que me revi e revivi um pouco no calor, nos cheiros e sons da N’Riquinha. A África suga-nos a alma e, este livro, curioso porque escrito em verso, é a simplicidade, a inocência e a ingenuidade assumidas por um soldado que outra coisa não tem para se expressar, senão o feitiço em que foi envolvido por aquela terra. Deixa-se absorver por um sentimento tão forte que o inspira a aventurar-se numa escrita, que não é naturalmente a sua, e, revela um talento natural, mas não educado, que o leva a escolher a poesia para se exprimir, numa métrica difícil e mais difícil ainda de entender para quem não tem hábitos de leitura. Confesso a minha surpresa e espanto pela forma usada e perante uma sensibilidade que, todos nós que com ele convivemos, estávamos longe de adivinhar. A leitura não é fácil e o primor épico só existe na intenção. Mas, isso, é o menos!
O Sousa, foi, para mim, uma surpresa cuja intensidade só pode ser medida por almas que por ali andaram, nas “Terras do Fim do Mundo”.
O livro dele, esse montão de generosidade e calor humano, deveria ter sido apresentado na parada, perante toda a companhia e em sentido estando todo o kimbo presente, tendo nos lugares de honra o secúlo Sarikisse, as Reginas (rainhas dos amores clandestinos coloridos), o Dango, o Vicente e o João, e, ao fundo, no palco principal, as almas do Fulai Monjuto, do Morgado e do Furriel Gonçalves.
Li o livro este fim-de-semana, não pela qualidade da escrita, que o meu amigo, melhor do que eu, sabe não ser, sequer, razoável. Li-o pelo conforto espiritual que me deu e pelo acalmar dos demónios africanos que todos transportamos escondidos no nosso íntimo. De vez em quando sabe bem ser surpreendido por aqueles que julgamos tão vulgares como nós.
Caro Cabrita:
Ainda não comecei a ler o seu livro, coisa que vou fazer após serenar da envolvência e do aperto de alma deste turbilhão de emoções com que fui assaltado, para não dizer violado. Ás vezes o rodar do botão das saudades não está em nós, aparece-nos de chofre vindo de onde menos esperamos.
Foi um gosto revê-lo no sábado. Obrigado pela oferta do seu livro.
Um abraço
Gabriel

quarta-feira, 1 de junho de 2011

GASTRONOMIA

Não sei como é hoje. Naquele tempo, alimentar tropas era uma tarefa complicada. A verba era escassa, a janta nunca estava ao gosto de todos, a variedade não abundava, a imaginação dos cozinheiros escasseava e a falta de jeito da grande maioria agravava tudo. Eram homens formados à pressa, escolhidos com base em critérios que nunca cheguei a perceber. Creio que poucos deles alguma vez tivessem ido além do estrelar um ovo. A verdade é que a tropa transformava pedreiros, carpinteiros, jardineiros e afins em cozinheiros temporários que, após cumprido o serviço militar voltavam às suas actividades iniciais.
Se transportarmos tudo isto para a realidade da Neriquinha as coisas pioravam. A cozinha não ajudava, o combustível era lenha colhida na mata, os tachos eram negros e grandes e o calor tornava a tarefa do cozinheiro um martírio. A agravar tudo isto, os ingredientes escasseavam, a ração era parca e nem pedras havia que permitisse confeccionar a sopa da dita. Na verdade a variedade do rancho oscilava ente a massa com carne e a carne com massa substituída de tempos em tempos por feijões. Bifes, nem vê-los e o peixe era indesejado. De vez em quando, lá vinham umas salsichas, uma feijoada com uma ou outra rodela de chouriço barato, umas ervilhas enlatadas e pouco mais. Ah! havia ainda a dobradinha. O ingrediente chegava seco, desidratado, em forma de pequenos pedaços parecidos com flocos que inchavam quando postos de molho. Dobradinha com feijão ornamentada com uma colherada de arroz, era assim um dos petiscos que permitia desenjoar da massa mas que não nos livrava dos feijões que engrossavam o molho com aspecto amarelado de cola líquida condimentada com o chouriço estrategicamente misturado para dar gosto e onde os mais gulosos ensopavam o pão deixando muito pouco para os putos que ajudavam na lavagem dos pratos.
O culpado de tudo isto, dizia-se, era o Vagomestre. O Morais, sendo o furriel responsável pelos “comes” levava com as culpas de tudo. Se a comida não agradava maldizia-se o Morais e se os feijões estivessem rijos alguma culpa teria de ter. E quando, perante o ram-ram repetitivo da ementa, lhe perguntávamos o que teríamos para o almoço, respondia invariavelmente:
- Surpresa!
Na verdade, a tarefa do vagomestre não era fácil: apenas dispunha de uma verba de vinte e dois escudos e meio para alimentar diariamente cada homem. De facto, servir três refeições diárias por apenas vinte e dois e quinhentos era obra a exigir dotes de prestidigitador, tanto mais que os ingredientes não estavam disponíveis. Supermercados não existiam, nem perto nem longe e o reabastecimento tinha uma periodicidade mensal através do MVL proveniente de Serpa Pinto que em viagens que levavam mais de uma semana, nos trazia os secos considerados suficientes para um mês (batatas, arroz, massa, dobradinha desidratada, enlatados e outros) e os molhados, naturalmente constituídos por vinho de péssima qualidade e cerveja a rodos. Tudo o mais que pudesse ser apelidado de “frescos” vinha do Luso trazido pelo Nord Atlas nas suas visitas semanais (verduras, carne, peixe congelado, ovos e pouco mais).
O que valia ao vagomestre (e a nós todos) era a abundância de caça que naturalmente arredia das matas próximas, obrigava a calcorrear chanas afastadas à procura da melhor peça. Uma boa caçada permitia compensar o magro orçamento e garantir bifes para o almoço, já que a carne vinda semanalmente do Luso era demasiado cara apenas chegando para misturar com a massa, com o arroz ou para compor um guisado pobre com batatas.
Mas, carne de caça… é carne de caça. Nada que se pareça com um naco de vitela ou uma costeleta de porco que uma simples pedrinha de sal transforma em pitéu. Carne de caça é adocicada, desagradável, enjoativa e torná-la comestível exigia tempo, marinadas prolongadas, empenho e imaginação do cozinheiro o que, devo confessar, não abundava por ali. A não ser que se tivesse a sorte de caçar uma palanca ou então uma gunga. A carne de gunga era a única que uma vez cozinhada se assimilava a vaca e o animal era tão grande que os dois lombos eram suficientes para servir uma refeição de bifes a toda a companhia.
O problema é que a caça não resolvia tudo. No tempo das chuvas era difícil apanhar alguma coisa de jeito e o pessoal começava a ficar farto, torcendo o nariz a certas variedades como o guelengue (óryx) ou o caixote (Gnu) animal desajeitado cuja carne tinha um sabor nada agradável. O orçamento, esse, continuava curto e qualquer pequeno deslize tornava-o deficitário obrigando ao racionamento e a refeições de massa com pouca coisa ou a arroz espapaçado com estilhaços de frango.
Contudo, havia ainda um recurso. A população local dedicava-se à criação de gado, naturalmente gado vacum. O problema era convencê-los a venderem. Entre os ganguelas, a riqueza definia-se pelo número de mulheres que cada um possuía e mulheres adquiriam-se com vacas. Meia dúzia delas dava para comprar mais uma mulher que podia ser usada para trabalhar nas lavras, cuidar das plantações de milho, nos afazeres do dia-a-dia e conferir estatuto. Naquela sociedade poligâmica, quanto mais mulheres e maior a manada, maior a importância do proprietário.
Para agravar a situação, o dinheiro não lhes dizia nada. Não precisavam dele. Era coisa inútil. Bastavam-se com o mínimo necessário para comprar um ou outro utensílio, uma ou outra alfaia, uma ferramenta, uns panos para as mulheres e pronto. Andavam descalços, vestiam pouca roupa e sobreviviam com culturas de subsistência.
Era aqui que entrava o P. Costa. Sendo o furriel responsável pelo “Chiado” estava habituado a negociar com a população a venda das utilidades e futilidades que se vendiam no barracão assim eufemísticamente apelidado. A verdade é que era o único que se dispunha a deslocar-se às pastagens, escolher a rês, negociar o preço e trazer o animal estrategicamente abatido com um tiro certeiro e que, uma vez na Neriquinha, o cabo Ferreira se encarregava de desmanchar e converter em bifes.
Certo dia, o P. Costa foi incumbido de mais uma dessas missões: convencer o ganadeiro a vender um dos seus animais. Fiz parte do grupo a que se juntaram os dois cabos da Força Aérea que nunca antes tinham tido o ensejo de passar além do arame farpado. O local escolhido foi a Neriquinha Velha, ali pertinho, nas cercanias das margens do Kuando, distância que levou cerca de uma hora a vencer.
Saltámos da berliet e seguimos o P. Costa que caminhou decidido pelas lavras contornando um morro de formigas salalé demonstrando conhecer bem o caminho. Acercou-se do único homem visível nas redondezas, cumprimentou, fez uma ou duas perguntas de circunstância e foi directo ao assunto.
A resposta meio evasiva do dono do gado, não parecia lá muito animadora. Era claro que o homem não estava interessado em vender o que quer que fosse. Mas as negas do homem não pareciam convencer o P. Costa que já esperava a reacção, passando de imediato à discussão do preço. Na verdade, discussão não houve já que os valores avançados se ficaram apenas pelas ofertas do comprador:
- Mil escudos! Tá bem?
Como resposta, um tímido e negativo abanar de cabeça, ao mesmo que tempo que balbuciava um…
- Não furriel.
Mas o P. Costa insistia, subindo a oferta
- Então, fica por mil e cem.
Para de seguida questionar de forma conclusiva.
- Então qual é a que vamos levar?
E sem dar tempo ao outro para responder, levou a arma ao ombro e com um tiro certeiro prostrou o animal que o seu olhar conhecedor já havia seleccionado.
Carregámos a vaca inerte enquanto o homem, agradecendo com tímidos acenos de cabeça, recebia as notas que compunham o preço, sem prestar grande atenção ao dinheiro. Para mim parecia claro que aquele dinheiro pouco lhe interessava. Na verdade acabara de ficar mais pobre
No caminho de regresso, olhando o corpo morto do animal, apenas pensava que finalmente teríamos rancho melhorado. Talvez uns bifes a que certamente faltariam as batatas fritas. Mas nunca me ocorreu pensar que não havia veterinário para garantir que aquela carne estava em condições de ser consumida.
Fiávamo-nos apenas na experiência que se supunha ter o Cabo Ferreira. Ao abrir o animal certamente saberia ver isso.