quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Kiela no Samatamo

Dou hoje mais importância ao modus vivendi do povo Ganguela, do que no tempo em que com eles convivi no dia-a-dia. Bem vistas as coisas, embora a memória, rendida aos quarenta anos já passados, esteja cada vez mais desvanecida, a verdade é que, na altura, ligava a pouca coisa que tivesse a ver com os seus hábitos. Retenho a ideia de que era um povo afável e humilde, mas culturalmente a anos de distância daquilo que se entendia designar por civilização.
Os seus costumes eram ancestrais e pautavam-se por hábitos e crenças que, então, me pareciam mais próximos da pré-história do que dos nossos tempos e não tenho dúvidas de que os seus contactos com as modernices dos brancos só terão começado com a chegada da tropa. Até então, bastavam-se com aquilo que a imensa savana lhes oferecia e isso era mais do que suficiente para a satisfação das suas escassas necessidades. Do rio tiravam o peixe e da mata tudo o resto. Quanto à água, havia-a em abundância por todo o lado.
Bastava dar uma volta pelo kimbo para se perceber tudo isso. As cubatas rudimentares que apenas serviam para se abrigarem do desconforto da noite, a pouco variada dieta alimentar, os parcos utensílios de que se serviam, os símbolos e fetiches à porta da curandeira de serviço, são exemplos dos sinais evidentes que se encontravam a cada canto.
O temor do desconhecido e as crendices no sobrenatural ilustram perfeitamente o que quero dizer. O pavor que tinham de uma máquina fotográfica radicava na crença de que o aparelho lhes roubava a alma; saía-lhes do corpo e ficava presa no papel da fotografia.
- Xicupula não! Gritavam à vista da temida maquineta.
Exemplos semelhantes havia-os às dúzias. Já não me lembro da maior parte, mas as mezinhas com sangue de galinha, as danças para afugentar feitiços, o estrume de vaca que espalhavam na cabeça das mulheres que atingiam a puberdade compondo um artístico e mal cheiroso penteado, o ritual da perda da virgindade e mais umas tantas crendices, compunham um leque razoável de comportamentos que considerávamos estranhos.
O batuque, com o seu tum-tum-tum que chegava a durar dias, tocado a propósito de muita coisa, tanto podia servir para abrilhantar uma comemoração ou uma festa, como para conferir dramatismo ao lamento pela morte de alguém ou ainda como banda sonora de um qualquer acto exorcista para afastar feitiços. Quando começava, nunca se sabia se comemoravam ou se choravam, se exorcizavam maleitas ou se simplesmente procuravam afugentar maus espíritos. O pior é que, normalmente, preferiam fazê-lo à noite. E quando isso acontecia, ninguém conseguia dormir nas redondezas. Felizmente que ali era o capitão quem ditava as regras. O assunto resolveu-se com uma decisão que, provavelmente veio colidir com os seus hábitos: batuques, só com autorização prévia do comandante da companhia e não poderiam prolongar-se pela noite dentro.
Mas, por ser o único que estava logo ali ao lado do aquartelamento, colado á cerca de arame farpado, esta regra só valia para a população do kimbo da Neriquinha. Em todos os outros, espalhados pela mata imensa, os costumes seguiam as suas próprias regras, não havendo brancos por perto que pudessem sentir-se incomodados.
O Samatamo era um desses kimbos. Mais pequeno que os demais, localizado nas imediações das chanas do Kuando, meio perdido algures na imensa savana, ficava a sul do Rivungo, a pouco mais de uma hora por uma picada que serpenteava por entre as árvores e, ao contrário de todos os outros, nem tão pouco era enquadrado por agentes da PSP. Talvez por isso, era visitado, com alguma frequência, pela tropa. Passávamos por ali de vez em quando, numa espécie de patrulhamentos que se faziam, mais para marcar presença do que para outra coisa; contactava-se com a população e aproveita-se para vigiar as margens do rio que ali fazia fronteira com a Zâmbia. Eram missões de dois dias, pacíficas, sem grandes canseiras ou caminhadas, efectuadas a cavalo de um unimog e chefiadas por um furriel à frente de meia dúzia de homens, já que mais do que isso, não cabia na viatura.
Durante a minha permanência no destacamento do Rivungo, fui encarregue de uma dessas missões. Sem pressa, saímos a meio da manhã, tomando a picada que seguindo para sul, nos levaria ao destino. Lembro-me de que passámos pela Mahínha, um pequeno aglomerado de quatro ou cinco cubatas construídas de forma muito rudimentar e que apenas albergavam duas ou três famílias que mantinham lavras de milho e massango nas redondezas e que distava do Rivungo menos de um quarto de hora. Hoje, consultando o Google Earth parece-me estranho que o local esteja assinalado com relevo, ao contrário do Rivungo que nem é referido.
A missão correu naturalmente, sem incidentes ou o que quer que fosse que merecesse ser relatado a não ser a noite passada à beira da chana, cuja humidade alimentava um autêntico viveiro de mosquitos gulosos que infernizaram o sono. A verdade é que desta missão rotineira, praticamente insignificante face a tantas outras que me levaram a calcorrear quilómetros de savana, sobre um sol impiedoso ou chuvas diluvianas, apenas ficou um insignificante pormenor que, mesmo sem ter fotografias, permanece gravado na minha memória e ao qual só vim a dar importância muitos anos depois.
Saltámos do unimog e refugiámo-nos à sombra de uma árvore frondosa à entrada do kimbo, procurando protecção para a inclemência do sol que nos derretia as poucas gorduras, ao mesmo tempo que se acalmava a sede, sorvendo avidamente a água dos cantis. Ali ao lado e também à sombra da mesma árvore, quatro ou cinco elementos da população entretinham-se acocorados à volta de três filas de pequenas covas, equidistantes umas das outras, como que compondo um tabuleiro meticulosamente escavado na areia endurecida pela chuva da noite.
Aproximei-me curioso. Sementes redondas, pouco maiores que avelãs, estavam irregularmente distribuídas por cada covinha. À vez, cada jogador escolhia uma cova, fazia cálculos e distribuía pelas covas seguintes, uma a uma, as sementes que recolhera da cova seleccionada. Fiquei a olhar tentando perceber a lógica do jogo, mas só consegui discernir que não era indiferente a cova escolhida. Dependia da sua localização face às que se lhe seguiam e da quantidade de sementes que continha e não sei bem porquê, fez-me lembrar o jogo de gamão com que o Viola e o Ramirez costumavam entreter-se num tabuleiro existente na Neriquinha; nunca o percebi e só aqueles dois é que o sabiam jogar. Pelo menos nunca vi mais ninguém a fazê-lo.
Contudo, o avanço das peças no gamão é ditado pelo número que sair nos dados lançados no tabuleiro, enquanto que, no jogo das covinhas, a decisão é do jogador e isso implica uma estratégia e obriga a cálculos que não me pareciam simples.
Ainda hoje não sei nem as regras nem a finalidade, mas sei que é um jogo de estratégia, aparentado com o xadrez, mais conhecido pelo nome de Kiela, que leva horas a chegar ao fim e cuja complexidade transforma em inofensivas brincadeiras de crianças os jogos de cartas como a sueca ou a bisca lambida, muito populares nas casernas dos nossos soldados.
Lembrei-me deste pequeno episódio ao ler o Afonso Loureiro. No seu Blog, contou uma pequena história sobre este jogo. Ao ver a fotografia que captou (ver aqui), veio-me à memória as covinhas no chão debaixo daquela árvore no kimbo do Samatamo.
Afinal aqueles indígenas, integrando uma etnia considerada entre as mais atrasadas do continente africano e cujo modo de vida me pareceu mais próximo da pré-história, eram exímios num jogo iminentemente intelectual.