segunda-feira, 5 de março de 2012

O 1º dos 565 dias das guerras de N'riquinha

Levanto-me cedo, após a luz viva e intensa do sol me ter visitado bem de madrugada. Percorro aquele caminho de sessenta metros de tabuinhas de praia que liga o meu quarto à messe. Um percurso que farei mais cerca de 2220 vezes, ao longo de um porvir de dias distantes que ainda nem imaginava ter de permanecer ali.
A bandeira, meio gasta pelas inclemências do sol, já se agita no cimo do mastro desde as oito horas da manhã, como sempre acontecerá enquanto a nossa soberania ainda ali reinar. É manhã. Mas a boca já se me seca porque não há vestígios de humidade no ar e o sol queima abrasador e luminoso. A sede em África é uma constante. De manhã, à tarde ou à noite.
Entro na messe de oficiais, contígua à de sargentos, uma divisão com cerca de três metros por cinco, que tem pouco mais que uma mesa rectangular e seis cadeiras. Ao fundo uma janela forrada com rede mosquiteira, que ficará sempre aberta deixando passar a brisa possível que amenize o ar quente reflectido das telhas de zinco do telhado. A um canto um pequeno frigorífico a petróleo que haveria de arvorar-se num oásis redentor de mil tormentos de sedes insaciáveis.
A porta de entrada é também ladeada por duas aberturas em forma de janelas que deixam passar a luz da rua e nos alargam a vista para a parada. Uma toalha meio encardida cobre a mesa onde se encontram alguns pães, manteiga e marmelada. Há quatro chávenas grandes de vidro viradas ao contrário, sinal de que fui o primeiro a chegar. No ar uma pequena nuvem de moscas entrechocam-se esvoaçando em círculos, aguardando a oportunidade de aterrarem na primeira carcaça que se libertar do pano que as cobre, ou sugar os restos de marmelada da faca inox de gume rombo já vencido pela guerra, que se obstina em manter-se ao serviço da pátria, até que alguém se decida ordenar ao nosso Sargento que a abata à carga, amortalhando-a num quadruplicado modelo próprio de 1945, dando-lhe por fim o merecido descanso.
Troco uma proposta de mistura de uma mistela preta (que com benevolência apelidávamos de café) com uma outra de cor branca (muito próxima do que habitualmente chamávamos de leite) por um refrigerante de maçã (Carbo Cidral) que acompanho com um pão com manteiga. Naqueles primeiros dias, consigo ainda vencer o desejo impertinente de romper a manhã com uma cerveja gelada, sofregamente tragada pela boca da garrafa, arrefecendo-me as entranhas durante uns trinta minutos de prazer efémero, acompanhados pelos protestos do meu pobre fígado, incapaz de lutar mais contra tantos inimigos quanto outros tantos escondidos nas matas.

Sou informado pelo ordenança que se encontra à porta da messe uma delegação do kimbo que me vem apresentar cumprimentos. Fico surpreendido pelo inesperado da situação. Não sei porquê, mas achei que era capaz de haver ali lugar a alguma solenidade, não obstante o quadro de pobreza daquela gente e o esquecimento a que sempre estiveram votados antes e durante a guerra.
Um acto de elegância ou subserviência? De curiosidade, deferência ou medo? Dou comigo a abotoar instintivamente o penúltimo botão da camisa como se me preparasse para um acto solene que obrigasse a aprumo. Coloco a boina, que me completa o atavio provisório até que cheguem o resto das malas que ficaram em Luanda, e saio ao encontro da comitiva anunciada. Deferentemente afastados da porta da entrada um grupo de sete ou oito anciãos dispõem-se ordenados em duas ou três filas atrás do primeiro que veste uma calça e um casaco, que, com esforço, adivinhamos terem tido outrora uma cor branca. O branco tinha agora dado lugar a um amontoado de nódoas de todos os tipos e feitios, algumas delas decididamente já parte integrante e definitiva do tecido, daquilo que percebi de imediato ser uma farda pela forma com se distinguia dos outros. O amarrotado do tecido é o mesmo que o da pele do ancião que se enruga em sulcos profundos denunciando longas guerras de silêncios sem registo na história. Alguns botões que restam estão pendurados por linhas puídas e meio desfiadas. Uma espécie de sobreviventes de um naufrágio tempestuoso, mas mantidos no seu lugar com o empenhamento sofrido de quem se obstina em preservá-los, como prova da sua fidelidade ao compromisso ancestral firmado com o reino, que lhe devassou o sossego e a harmonia com a terra. O colarinho justo e sem gola deixa transparecer ainda restos de um passado de altivez, que se aliava à sua inequívoca alvura primitiva, combinando com o contraste da pele queimada por séculos de sol e submissão.
Rapidamente me apercebo estar na presença do soba.
Os restantes são secúlos, uma hierarquia tribal mantida até aos nossos dias. Vestem restos de roupas esfarrapadas quase todas de cunho militar. Algumas, só com algum esforço dão para perceber ainda a sua origem. Alguns vêm descalços. Um deles procura mascarar a dignidade perdida, trazendo enfiados nos dedos dos pés uns xanatos de praia meio destruídos e com cor omissa. Um outro calça botas da tropa que o distante tempo de uso e maus-tratos avantajou para um 45 largo, albergando agora um pé que a fome minguou para um 35 estreito, que ameaça soltar-se a todo o momento em cada passo desajeitado e quase andrajoso que dá, arrastando-as na areia quente em passos bem cuidados para que não caiam e se não percam pelo caminho. Os atacadores de cabedal, outrora reluzentes de graxa e aprumo, foram substituídos por cordão feito de casca de arbusto, na ausência de artefactos mais apropriados que mantivessem digna a postura militar de outros tempos e outros usos.
Fitam-me com um sorriso pálido. O soba acena-me com uma espécie de gesto suave de continência de mão meio aberta que eleva até à têmpora direita, enquanto solta algo que confundo com um gemido. Os outros seguem-no numa sequência de aceno semelhante que se fica pelo meio gesto. Uma certa forma de imitação inacabada que sugere cansaço. Cansaço da vida, da guerra e da tropa, que era agora nova e de esperanças renovadas.
Trazem um cicerone. O Lupale, claro…
Não falam português. Balbuciam palavras dispersas que acompanham com gestos de afirmação da cabeça.
O Lupale faz as apresentações. Tem que falar alto para que o soba o possa entender considerando a sua avançada idade e a surdez que já o atinge, deitando um pouco por terra a teoria do ruído da civilização como causa essencial para a mouquice que a todos nos vem molestando nos dias que correm.
A lição já vinha estudada. Das poucas palavras no dialecto que o soba balbucia, o Lupale traduz num discurso político completo. Uma espécie de protocolo de estado daqueles que já estão tipificados e são sempre iguais. Vêm apresentar cumprimentos ao novo capitão, aproveitando a oportunidade para transmitir as dificuldades da população. Basicamente a fome (zála).
Cumprimento-os um por um e tento fixar o nome de cada um deles, que o Lupale vai pronunciando repetidamente adivinhando a minha dificuldade em os fixar. Sinto que me olham como uma nova esperança caída do céu, embora sem que dela esperem grande coisa. Dobram-se à frente em cada cumprimento. O aperto de mão tem contornos de súplica ou submissão. Agarram o próprio antebraço da mão que me estendem, como se me quisessem significar que ma entregavam como preito de vassalagem, subserviência ou medo.
Vem-me repentinamente à memória os tempos dos primórdios da colonização. As coisas não devem ter sido muito diferentes daqueles gestos, daquela relação vencedor/vencido.
Faço um elogio honesto à farda do soba e agradeço o facto de a envergar especialmente para me visitar, facto que me foi adiantado pelo Lupale. Jamais voltaria a vê-lo fardado, a não ser em mais uma ou duas ocasiões especiais. Mantenho uma conversa de circunstância e procuro saber um pouco mais sobre os problemas da população. Ficam-me dúvidas quanto à correcção da tradução efectuada, quer para um, quer para o outro lado. Noto que as minhas palavras de conforto e esperança não convencem os meus interlocutores. Compreendo que não lhes prometo nada que outros o não tenham já feito, muito provavelmente sem que o tenham cumprido. Prometo ir visitar o kimbo e inteirar-me dos problemas que preocupam o soba, nomeadamente a zála cujo termo eu já conhecia desde o primeiro dia.
Dou por terminado o encontro mas percebo nos gestos que não ouviram o que queriam. Parece claro que haviam preparado um conjunto de questões no sentido de as exporem e levarem resultados de volta. Fico a observar o regresso ao kimbo. Caminham lentamente como quem quer voltar para trás para repetir as preocupações e obter outras respostas. Apercebo-me de uma troca de palavras mais acaloradas entre o Lupale e o soba, sinal evidente de que há censura e desacordo quanto à forma como os assuntos tinham sido abordados. Perco-os de vista a passarem a portada do aldeamento. Caminham arrastados, olhos no chão e braços pendendo ao longo do corpo, ou a mão direita coçando uma comichão eterna que não existe no antebraço do outro lado, uma espécie de sarna que não se vê mas lhes fustiga o ser, suportado num estômago dorido e vazio de pirão e de fé. Como teria sido diferente aquele regresso, caso o sentido das palavras tivesse conduzido a outra fé e outras certezas, pelas quais esperavam e desesperavam havia décadas. Como teriam ficado felizes se lhes pudesse ter dito que a guerra ia acabar, que era tudo o que queriam e mais desejavam para voltarem a ser felizes no seu mundo livre feito de séculos de liberdade.

Pedro Cabrita (In-Capitães do Vento)

quinta-feira, 1 de março de 2012

Carraças no Demba

A savana do Cuando Cubango é uma autêntica exibição da natureza selvagem. Por um lado, inóspita, hostil e traiçoeira e por outro, deslumbrante, luminosa e exuberante, abrindo-se em espaços imensos de uma beleza muito própria e difícil de descrever. Por ali não existem montes ou vales, a vegetação é escassa e pobre e as árvores, de pequeno porte e espaçadas, parecem encolher-se aos rigores de um clima dominado por um sol inclemente que nos fritava os miolos e trespassava sem dificuldade a timidez da folhagem miudinha que apenas conseguia coar, aqui e ali, a luz forte, semeando desordenadamente alguma sombra pelas imensas planícies da savana, sem qualquer efeito apaziguador no calor dominante.
Cumprindo, então, a segunda comissão de três meses no Rivungo, fui incumbido de executar uma pequena missão de patrulhamento que visava percorrer o troço de mata de pouco mais de dezena e meia de quilómetros, que começava nas margens do Cuando, a norte da missão de Santa Cruz, e acabava no Demba, último kimbo no trajecto que ligava a Neriquinha ao Rivungo.
Para o efeito, contava com meia dúzia de homens e, como guia, um sipaio dispensado pelo administrador Litenda, ajuda preciosa e necessária, já que a zona a percorrer não tinha trilhos ou outros pontos de referência que permitissem a utilização dos mapas do terreno. E isso tornou-se óbvio logo que saltámos do Unimog num ponto indeterminado da picada que traçava uma linha serpenteante a separar a orla da mata da extensa chana do Cuando. Para mim, o desenho irregular e recortado do pantanal que definia os domínios do rio, tornava impossível traçar uma perpendicular ao seu curso que nos colocasse no rumo certo. Olhando para o mapa do terreno, parecia fácil; o percurso estava ali claramente definido pela singela linha, traçada a lápis, a ligar o rio ao Demba.
Olhei em volta. Qualquer direcção que parecesse oposta à chana era um rumo possível. Mas qual delas? Era tudo a mesma coisa, a paisagem não ajudava nada e o contorno da chana que abraça o rio tornava impossível definir uma perpendicular. Do lado da mata, as coisas também não ajudavam; tudo em volta era monotonamente repetitivo e até as árvores pareciam cópias umas das outras.
Mas não para o sipaio. A forma decidida como apontou o caminho e avançou mata adentro, deixou-me a pensar. Nunca cheguei a perceber como se orientavam. Não obstante a total ausência de trilhos ou outra qualquer referência, avançava como se um caminho invisível lhe indicasse a direcção a seguir. Olhando em volta, ainda procurei encontrar o que quer que fosse que lhe pudesse estar a servir de orientação, mas nada. Apenas areia seca matizada aqui e ali por tufos de capim rasteiro amarelecido pelo cacimbo que se instalara havia meses. Não vislumbrei qualquer carreiro, pista ou pegada que permitisse aceitar que aquele era o percurso a seguir. Na verdade, ainda hoje estou convencido que, nos últimos meses, por ali não passara ninguém, nem sequer bicho. Não era época das chuvas, coisa que não nos visitava havia tempo. Ao menos, se tivesse chovido, poderia sempre pensar que teria apagado sinais de passagem. Mas não. Por aquela altura eu já conhecia bem a mata e já calcorreara muitos carreiros e itinerários arenosos da savana. Por onde passasse gente, havia sempre sinais evidentes disso, mesmo que, durante a noite, tivesse caído uma daquelas chuvas diluvianas habituais. Mas ali não. Quer o terreno quer a vegetação ressequida estavam absolutamente intocados, virgens. Não! Por ali não passara ninguém! Ali não era percurso de guerrilheiro, nas suas andanças a caminho das improvisadas bases no interior.
À nossa frente, o homem continuava, decidido, num passo vivo e cadenciado pelo meio do descampado em direcção a lugar nenhum, como se um ponto lá à frente lhe definisse um azimute. As extensas clareiras de areia esbranquiçada, pintada pelo amarelo ocre do capim seco, matizado aqui e ali de tufos verdes da folhagem perene de ervas estranhas, sucediam-se em desenhos irregulares entrecortadas de forma desordenada por grupos de árvores de pequeno porte e tronco escurecido pelo fumo das queimadas que ciclicamente assolavam a mata e depositavam, no solo, um pó escuro e fino que se levantava pelo arrastar penoso dos pés que teimavam em enterrar-se na areia fofa da savana, atrasando a marcha e duplicando o peso das botas.
Pouco mais de meia hora, sob as ferroadas de um sol impiedoso, foi o suficiente para esgotar toda a resistência do pequeno grupo que, em esforço, procurava acompanhar a passada do guia. Exaustos, com a garganta seca, quase impedindo a respiração ofegante, deixámo-nos cair à sombra quase inútil de um pequeno grupo de árvores, na tentativa vã de fugir ao calor.
Todo o percurso foi um martírio. O tempo de marcha foi ficando cada vez mais curto, enquanto se alongavam as paragens e se mitigava a sede com pequenos golos, cuidando de fazer durar o escasso litro de água transportado no cantil. Sabendo-se que não haveria água no percurso, racionava-se a que se trazia. O guia, esse, parecia olhar-nos de soslaio, como se não compreendesse a fraca resistência da tropa.
Foi com alívio quando, lá para o fim da tarde, se divisaram as palhotas do kimbo no outro lado da clareira que de repente se abriu à nossa frente, qual oásis no meio do deserto. O pequeno aldeamento do Demba, com cerca de uma vintena de palhotas toscamente construídas e espalhadas desordenadamente num recanto da chana formada por um braço do rio Uefo, albergava uma população que se dedicava ao cultivo de milho e criação de algum gado.
O posto da PSP, visível na periferia do kimbo e a poucos metros da picada, mais se parecendo com uma espécie de missão despojada, plantada na terra de ninguém, compunha instalações precárias que serviam de morada e local de trabalho a dois agentes e outros tantos auxiliares recrutados entre a população local, cuja missão compreendia a quase impossível tarefa de defesa daquela gente.
Fomos recebidos efusivamente pelos dois agentes. Conhecia-os muito bem e demonstravam sempre que a tropa era bem-vinda. A nossa chegada amenizava o isolamento, animava a conversa e trazia segurança ao local. Para já, na noite que se aproximava, seriam praticamente desnecessários os quartos de sentinela que, religiosamente, cumpriam noite após noite, numa estratégia rudimentar de segurança precária contra a eventualidade de um ataque inimigo, coisa que, verdade seja dita, não era costume acontecer. Ali só havia população e nada de estratégico que interessasse aos guerrilheiros combater. Um ataque trazia sempre insegurança às populações e isso não era conveniente. Sabia-se que dependiam deles para muita coisa e hostilizar quem diziam defender não era boa política. Mesmo assim, o Mugamba, o kimbo mais próximo que se seguia na linha da picada que levava à Neriquinha foi, um ano antes, atacado por um pequeno grupo de guerrilheiros, mantendo os PSP’s sitiados por mais de um par de horas, sob uma fuzilaria intensa.
No momento, aquela meia dúzia de tropas recém chegada, compunha um reforço bastante significativo na segurança. Era quase garantido que, naquela noite, não haveria problemas. As instalações da PSP não passavam de uma espécie de barracão, de pau a pique, barro e capim, só se diferenciando de qualquer das palhotas do kimbo pela sua maior dimensão. Como os demais postos, estava rodeada por uma espécie de paliçada com cerca de um metro de altura e meio metro de espessura, constituindo uma frágil e rudimentar muralha de paus, porém, quase inexpugnável. Quer se queira, quer não, era a única segurança oferecida à barraca.
Um abraço e uma cerveja acompanharam a recepção quase esfuziante que aqueles dois homens me dispensaram. De repente, a sua limitada vida de Robinson Crusoé foi interrompida, ganhou outra dimensão e fez levantar os ânimos. E isso era visível no fácies de contentamento de gente que, durante semanas a fio não tinha com quem falar, a não ser os parcos diálogos entre os dois, eventualmente envolvendo os dois ajudantes e, aqui ou ali, uma conversa ou outra, necessariamente curta e de circunstância, com elementos de uma população que, para além do mais, nem português falava.
Decididamente, eramos bem-vindos. Naquele dia haveria com quem falar, histórias e novidades animariam o serão e a noite seria passada em maior sossego e segurança; pelo menos sem sobressaltos. Se calhar até as rondas seriam dispensadas. Não o entendi como paga pela segurança e sossego que trouxemos àqueles dois, mas a verdade é que, de alguma forma, fui compensado. Desde logo, as três ou quatro cervejas que saboreei, mais o convite para lhes fazer companhia ao jantar e a irrecusável oferta de pernoita no aconchego da barraca era algo não propriamente dispensável ou desvalorizável. A pequena enxerga suplente, arrumada a um canto, era para mim a cereja no cimo do bolo. Um colchão de espuma, um cobertor e um lençol macio eram um luxo perante a perspectiva de uma dormida ao relento e com uma vantagem acrescida: pelo menos dormiria sem as botas enfiadas nos pés. Pode parecer estranho mas, dormir calçado é desconfortável e muito mais do que parece. Por outro lado, era tempo do cacimbo, altura em que as noites da savana gelam até aos ossos. Por oposição, o espaço dentro daquelas rudimentares instalações, de chão de terra e sem tapetes, oferecia um conforto não descartável; O capim que as envolvia, mantinha-as frescas sob o calor intenso do dia e bastante aconchegantes quando o frio gelava a noite.
Nesse entretanto, o pessoal procurou abrigo e escolheu o melhor sítio para dormir. Serviu na perfeição um cercado, vedado a toda a volta com uma espécie de sebe que os protegeria da friagem e com cobertura de capim que os deixaria ao abrigo da cacimba. Fossem quais fossem as condições, sempre era melhor ali que no meio da mata.
Cada um escolheu um recanto, arrumaram-se, recostaram-se degustando as conhecidas surpresas enlatadas da ração de combate e, após um bocado de conversa, adormeceram vencidos pela estafa de um dia de caminhada sobre as areias secas e escaldantes da savana.
Certamente mais bem instalado, segui-lhes o exemplo. Por ali, a hora de deitar chegava com o cair da noite. Não havia luz eléctrica e nada com que passar o tempo. Dormir era a única coisa a fazer. Por mim, o cansaço não me deixou outra opção e adormeci quase de imediato.
O dia seguinte começou bem cedo. Naquelas paragens, o sol tem sempre pressa em nascer e é irritantemente madrugador. Na época do cacimbo, cinco horas da manhã já é dia claro e uma hora depois o calor já aperta. Levantei-me, saí e fui até ao local onde o pessoal se acoitara. Queria saber como estavam e decidir o que fazer enquanto o unimog que nos recolheria não chegava.
De longe, apercebi-me que um burburinho se instalara, concluindo, ao aproximar-me, que algo não correra bem durante a pernoita e não era qualquer conflito ou zanga entre eles. Estavam seminus, alguns com cara de poucos amigos e coçavam-se como se tivessem sido atacados por uma praga de sarna.
Cada um, à vez, ou acordado pelo parceiro do lado, foi-se dando conta que carraças de tamanho a que não estavam habituados, se haviam alapado à pele: uma ou outra nas costas, algumas nas virilhas e outras por aqui ou por ali. Algumas já arrancadas, outras esborrachadas e outras ainda em vias disso, deixavam claro que o grupo fora atacado, durante a noite, por um inimigo inesperado.
O local mais ou menos protegido e que, na noite anterior, parecera o lugar ideal para pernoitar, era afinal uma espécie de curral, inexplicavelmente limpo, onde a população costumava meter o gado que pastava livremente na mata próxima. E o gado, naquelas paragens, costumava estar infestado de carraças. O medo que alguns demonstravam e a confusão que se gerou, explicava-se pela real possibilidade de poderem vir a contrair uma doença que se sabia manifestar-se através de febres altas, para além do desagradável da situação, da comichão insuportável, da borbulhagem e visível intumescência avermelhada provocada pelas ferroadas dos bichos.
Melhor seria se tivessem dormido ao relento. Certamente que o desconforto teria sido bem mais desejável.