quinta-feira, 1 de agosto de 2013

A MATA DA CAPUA

Não obstante a obscura fama do local, a noite decorreu em sossego, sem o mínimo percalço ou o que quer que fosse que confirmasse a perigosidade daquele ermo. Não me recordo de ter passado mal a noite. Aliás, tenho de memória que dormi sem sobressaltos e de um sono só e nem sequer me dei conta do desconforto do leito arenoso que escolhera e da precariedade do improvisado tecto.
Não me preocupei em saber como cada um se desenrascou, mas não recordo de alguém se ter queixado da pernoita. O facto é que, chegada a hora de seguir viagem e enquanto cada um ia retomando o seu lugar nas viaturas, o único que deu sinais de ter passado mal a noite, foi o Morais. Talvez por ser o vagomestre, procurou asilo na cozinha aconchegando-se a um canto resguardado da cacimba da noite. Mas teve azar. Pelos vistos, o soldado Raimundo, mais conhecido pela alcunha de Candeeiro, terá tido a mesma ideia. Pescador dos mares algarvios em quem o álcool despertava os maus fígados, provavelmente já meio bebido, como aliás era seu hábito, terá caído por ali, e não me admiro nada que a escolha tenha sido motivada pela proximidade das grades da cerveja.
O facto é que o Morais se queixava de não ter conseguido pregar olho; o Candeeiro passou a noite rangendo os dentes, o que, considerando o exíguo espaço a que estavam confinados, para além dos arrepios que provocava, era barulho bastante para tirar o sono a qualquer um.
Era ainda noite cerrada quando os motores, roncando, arrancaram da sua imobilidade as viaturas meio atascadas na areia seca, avançando lentamente pela escuridão rasgada pela luminosidade dos faróis, ficando de novo o pessoal do Dima sozinho, entregue à sua rotina.
Tínhamos pela frente a extensa Mata da Capua e era importante que fosse atravessada enquanto durasse o dia, pormenor que condicionou todo o plano da viagem, a começar na saída da Neriquinha depois do almoço, o retomar da viagem pelo meio da manhã a partir de Mavinga e a terceira etapa que agora se iniciava quando ainda faltava um par de horas para o amanhecer. É verdade que sempre se ouvira, em cada chegada do MVL, as descrições pouco animadoras das características daquela mata que, descontando a propalada proximidade das bases inimigas, escondia dificuldades e obstáculos vários responsáveis pelos atrasos do MVL nas suas idas e vindas mensais carregados com os mantimentos para a tropa aquartelada desde o Dima até ao Rivungo. Assim, importava sair cedo prevenindo-se qualquer eventualidade ou surpresa. Acima de tudo, era necessário evitar que qualquer acidente de percurso nos obrigasse a uma indesejável pernoita no meio daquela selva travestida de savana.
As viaturas avançavam seguindo a picada cujos sulcos iam sendo fracamente iluminados pelo foco saltitante dos faróis que a irregularidade do caminho impedia que se fixassem num ponto. Perscrutava-se o negro envolvente na tentativa de adivinhar os contornos da mata escondida no denso e impenetrável manto preto da noite que, como quem não quer a coisa, quase sem se dar por isso, foi sendo vencida pelo cinzento da manhã que, aos poucos foi denunciando o pó fininho que, despertado pelo rolar dos pneus, se levantava em remoinhos que iam cobrindo o ar circundante de uma poalha difusa misturada com restos de folhagem seca que, esvoaçando desordenadamente acabava por poisar hesitante até a viatura seguinte voltar a tornar tudo num reboliço irritante que incomodava quem se lhe seguia.
Aquela mata era de facto diferente. Com a mesma areia, mas de maior densidade arbórea. E isso determinou que a picada que a atravessava fosse irritantemente sinuosa, talvez em demasia. E para piorar as coisas, as raízes à superfície constituíam obstáculos que obrigavam as viaturas a um permanente escoucinhar, a uma dança frenética, um constante balanceio entremeado de saltos e ressaltos que iam massajando os corpos do pessoal que procurava a todo o custo manter o equilíbrio sobre a carroçaria desconfortável de viaturas impróprias para o transporte de gente. E tudo isto retardava o andamento deixando aquela conhecida sensação de passeio de tartaruga a conferir maior dimensão a um local onde, pensava eu, nem ratos existiriam.
A Lagoa da Capua apareceu-nos pela frente como por encanto, assim como se aquela mata incaracterística se rasgasse para, dando-lhe espaço, a acolher. Numa espécie de passe de mágica da natureza, saímos de um mundo estéril e hostil para um quase paraíso, um oásis definido por um enorme espelho de água reflectindo o intenso azul do céu, numa quietude serena contrastando com a paisagem envolvente. Os meus rudimentares conhecimentos de orografia não são suficientes para explicar como é que, no meio daquela imensa aridez e sem qualquer curso de água que a alimente, se forma uma lagoa como aquela. Provavelmente uma indelével depressão no terreno, tão subtil que nem se note, foi recebendo as águas das chuvas que, não tendo para onde ir, escorriam para ali, alimentando em permanência aquele pequeno mar de água doce que convidou a uma paragem, aproveitada para arrefecer os motores, compor o estômago, desentorpecer as pernas e apreciar aquele inusitado presente da natureza.
Mas o tempo urgia e havia ainda muita picada por vencer. Os quilómetros não eram muitos mas a dureza do caminho fazia com que a sua travessia consumisse horas em demasia. Reiniciou-se a marcha penetrando de novo naquele mundo sempre igual, cansativo e entediante que parecia não ter fim, até que, mais ou menos como previsto, a mata deu lugar de novo a uma savana aberta, igual à que aprendemos a conhecer ao longo dos últimos dezoito meses das nossas vidas. Dali até às margens do Rio Cuito foi um saltinho e lá para depois do meio da tarde, a grande chana que abraça o rio, igual a todas as chanas que palmilhámos, lá bem para baixo, no território da Neriquinha, apareceu-nos pela frente. O Rio Cuito, caudaloso e de águas mansas a lembrar o, até então, nosso Cuando, deixava-se atravessar naquele ponto por uma ponte de madeira, porém de aspecto robusto, que me deu a sensação de separar dois mundos diferentes. A picada que ali nascia e serpenteava por uma encosta de terra avermelhada e dura era obviamente diferente da consistência arenosa e esbranquiçada da savana que aprendemos a conhecer. Finalmente, ao fim de três dias a calcorrear a terra de ninguém, isso parecia ser o primeiro sinal de que as terras do fim do mundo começavam a ficar para trás.
Lentamente, a coluna foi trepando, encosta acima, em direcção ao Cuito Cuanavale que, lá no alto, nos aguardava. Ali era a sede do nosso batalhão mas aonde ainda ninguém da 3441 tinha posto os pés.
Alonguei o olhar para a imensidão da savana que, ao longe, se estendia para lá do leito sinuoso e resplandecente do rio. Senti uma sensação de alívio ao interiorizar que não mais voltaria para ali. Por agora, apenas me apetecia um bom duche que me livrasse do sarro acumulado nos últimos três dias. Tirando isso, tudo ficaria perfeito, pensei, se não encontrasse pela frente o comandante do batalhão. Tinha para mim que o homem não era pessoa de bem e por isso preferia não arriscar a eventualidade de um encontro que viesse estragar aquele fim de tarde quase perfeito.