domingo, 1 de setembro de 2013

Do rio Cuito às Mabubas

Não retenho grande coisa sobre o Cuito Cuanavale. Se calhar é trauma; associei-o sempre ao comandante do batalhão e é no que dá. Imaginei sempre o local como uma espécie de coito do comandante, feito à sua imagem, e não resistia à contraditória mania de bem dizer o facto da Neriquinha estar bem longe, lá no interior profundo e inóspito da savana o que, pensava eu, não convidava tão ilustre e indesejável figura a aparecer por ali; se a minha memória não me atraiçoa, isso aconteceu uma única vez, pelo menos que eu tivesse dado conta. E, mesmo assim, talvez por azar meu, foi o suficiente para levar um raspanete que, por imerecido e humilhante, me deixou este trauma que teima em não desaparecer. Logo eu, que tudo fazia para não infringir as regras.
Tirando isso, apenas retenho do Cuito Cuanavale a ideia de que o rio, lá em baixo, estabelecia a fronteira entre a terra de ninguém onde fui obrigado a viver por uns longos dezoito meses e o limiar da civilização que se foi insinuando aqui e ali através de sinais perfeitamente visíveis aos olhos de quem se habituara a planuras imensas onde as estradas se resumiam a picadas sinuosas e cansativas escavadas pelos rodados das viaturas na areia entediante da savana.
O facto é que, da passagem por aquele local, apenas recordo a estrada que dali levava a Serpa Pinto, de terra sim, mas firme, de macadame, com largura suficiente para acomodar trânsito em dois sentidos permitindo um andamento vivo que, para mim, se assemelhava a uma velocidade excessiva quando comparada com os pouco mais de cinco quilómetros por hora a que estávamos habituados. Decididamente, saíamos das terras esquecidas do fim do mundo e, em velocidade de cruzeiro, caminhávamos em direcção à civilização de cujas mordomias já quase só se retinham imagens longínquas.
Em menos de um nada, aportámos a Serpa Pinto. Aquele bocado de estrada que liga o Cuito Cuanavale à cidade foi vencido em cinco horas, uma coisa sem significado quando comparado com o tempo que gastávamos a percorrer uma centena de quilómetros por qualquer das picadas que fomos obrigados a cruzar nas nossas andanças por terras da Neriquinha.
Não nos deram tempo de conhecer Serpa Pinto ou então, a minha memória não foi capaz de reter nada que me faça lembrar a cidade. Não guardo nem uma imagem de um café ou cervejaria, uma simples tasca ou algo de semelhante. Mas é verdade que almoçámos na cidade e muito provavelmente devo ter-me lançado na demanda de uma bica. Digo isto porque nem me passa pela cabeça imaginar que não tenha querido matar saudades de um cafezinho tirado à pressão, bebidinha que chegámos a considerar coisa de ficção. O facto é que, tudo o que recordo não passa de uma imagem fugaz de um parque de viaturas isolado e que intuí localizado na periferia da cidade.
Ali mudámos de meio de transporte; as viaturas, próprias para vencer terrenos arenosos, foram substituídas por outras que nos levariam dali ao destino e, para não variar, também estas mais adequadas ao transporte de carga que não de gente. Contudo, para nós, habituados a  picadas irregulares e poeirentas, a suavidade do asfalto mais do que compensou o desconforto e a falta de assento enquanto que o ar, agora completamente limpo, apenas era irrespirável pela intensidade do calor.
A viagem não tem história. Os mais de mil e cem quilómetros que separavam Serpa Pinto do nosso destino prometiam uma viagem longa e monótona. Recordo a primeira metade do percurso, definido por uma estrada ondulante, sempre a direito, como se fora um carrocel que, em vez de andar à roda, seguia sempre em frente num sobe e desce sem fim que os motoristas aproveitavam para poupar combustível; desligavam o motor nas longas descidas deixando as viaturas rolar livremente até atingirem velocidade considerável, a suficiente para, ganhando embalagem, galgar parte substancial da subida que se seguia e só quando o andamento ameaçava morrer, ligavam de novo o motor para vencer o resto da subida e embalar de novo em roda livre para a depressão que antecedia a lomba seguinte.
Embora o andamento atingisse, por vezes, uma velocidade significativa, a viagem não deixou de ser monótona e cansativa através de um território imenso com paisagens a perder de vista e cheias de coisa nenhuma, cenário que nos acompanhou até ao fim do dia. O Alto Hama, mais ou menos localizado no centro do território, na província do Huambo, foi o sítio escolhido para uma paragem. Por ali ficámos umas horas que penso terem servido fundamentalmente para o descanso dos motoristas já que não é possível falar de pernoita nem de jantar. O repasto resumiu-se a uma ou duas latas da ração de combate provavelmente acompanhadas por uma cerveja adquirida num estabelecimento comercial ali existente. Dormir, de verdade, não creio que alguém o tenha conseguido. Dormitar talvez seja o termo mais adequado para definir a forma como cada um passou aquele bocado de noite; recostámo-nos por aqui e por ali, num deixar passar o tempo, à espera da hora aprazada.
Talvez por isso se tenha recomeçado a viagem bem cedo. Por volta das três horas da manhã já as viaturas rolavam através da noite sem noção exacta do sítio por onde andávamos. Por mim, aproveitei o embalo e fui dormindo, aos bocados. Desperto por um solavanco mais vivo, voltava a dormitar face a ausência do que quer que fosse que justificasse manter-me acordado. A verdade é que não me lembro de um só pormenor daquele percurso.
Sei que não passámos por Luanda. Naturalmente, por alturas de Viana, as viaturas seguiram por um atalho que nos deixou na estrada que leva ao Caxito. Passámos pela fazenda Tentativa, atravessámos o Caxito e pouco tempo depois desembocámos na rua principal das Mabubas.
Dia catorze de maio, a tarde ia a meio quando, finalmente, após quatro dias a calcorrear mais de mil e setecentos quilómetros de picadas e estradas, desde os confins das terras-do-fim-do-mundo até ao extremo oposto daquele vasto território, chegámos ao nosso destino. Era promissor  o cenário que se desenrolava à nossa frente à medida que as viaturas rolavam pela rua principal até estancarem no largo que se seguia à primeira correnteza de casas, frente ao edifício do comando. A lembrança ainda bem viva do ambiente hostil e poeirento da Neriquinha deixou-me a agradável sensação de que acabáramos de entrar num local que prometia parecer-se com um bocado de paraíso ali às portas de Luanda e bem pertinho do mar.
Pode parecer contraditório mas, naquele momento, deixou de fazer sentido a sensação de conforto e segurança precária propiciada pela cerca de arame farpado da Neriquinha.