quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Homenagem

Tentei deixar este texto nos comentários mas alonguei-me e ultrapassei a cota permitida.
Achei, por sentimento, que não deveria retirar uma única palavra.
Daí esta publicação.
Ter connosco o meu Amigo Manuel António Pinto embarga a manifesta surpresa que nos é tão grata e desencadeia uma bem temperada mistura de alegria, enorme respeito e admiração.
Frequentemente utilizamos estes considerandos no limbo do lisonjeio gratuito ou de ocasião, sendo de todo pertinente que se esclareça desde já que o que nos move a todos, quase garanto que sem excepção no referente a este nosso Amigo, tudo é sincero e preito de gratidão.
Manuel António Pinto não foi apenas o 1º Sargento da C.Caç. 3441.
Ele foi o verdadeiro comandante daquela Companhia.
 
Um homem singular que (ia dizer "agregava", mas cometia uma imprevidência; daí...) agrega a honradez, a competência e a capacidade de trabalho, num espírito vivo e determinado em servir sempre bem uma causa e o dever em que se determina em a cumprir com denodo.
É meu desejo extravasar esta alegria imensa de o "rever" por aqui e de lhe deixar a minha melhor expressão de admiração pelo seu carácter e virtuosismo que nestes 40 anos que já lá vão nunca me cansei de propalar a amigos, quando era da guerra que se falava.
Porque a retórica das palavras pode escamotear o senso do seu significado, é meu desejo deixar dois ou três episódios que me parecem bem mais eloquentes daquilo que é meu desejo enaltecer.
 
- O 1ºdesses episódios confere ao M.A.Pinto o estatuto de detentor de cátedra da Administração Militar.
Quer o nosso Comandante de Batalhão, quer o 2º Comandante, sempre que se deslocavam à N´riquinha, sub-repticiamente colocavam problemas de administração ao Pinto (problemas embrulhados que ocorriam na sede do Batalhão...), solicitando que solução ele teria para as solucionar, caso acontecessem com ele; quase um exame...
E o Pinto, antecedendo sempre as suas opiniões com a proverbial… "Salvo melhor opinião...", desenvolvia o seu parecer com uma aparente timidez mas total segurança naquilo que dizia.
Os Comandantes registavam (mentalmente...) e o nosso 2º Comandante (Major Tamegão), numa das várias inspecções que fazia à Companhia, lá me dizia no dia seguinte: "Ó Cabrita; você tem aqui um 1º Sargento do caraças...!"
A meio da comissão lá veio o 1º Sargento da 3442 fazer um autêntico estágio nas Terras do Fim do Mundo...
 
O 2º episódio tem a ver comigo.
Se o 1º Sargento da 3442 teve que vir fazer um estágio à N´riquinha, fácil será imaginar de quantos estágios eu precisava; eu que frequentei um minimíssimo estágio de Administração Militar de 4 meses em Mafra...
 
Um dia o nosso Pinto em trânsito de apresentação do balanço mensal, talvez o 3º da comissão, perante certamente o meu embaraço perante tanta conta e mais parcelas ainda, posicionou-se como que em parada e disse, deferente como sempre: "Vossa Senhoria meu Capitão escusa de procurar entender as contas porque se eu quiser enganá-lo engano-o mesmo...! Propunha-lhe o seguinte: o meu Capitão trata da guerra e deixe as contas comigo!"
Nem mais. E vá lá imaginar-se porque razão eu aceitei a proposta sem hesitar cinco segundos depois...?!
É que 3 meses já me sobravam para apreender a competência, a honestidade e a sensibilidade do meu 1º Sargento.
 
Apenas acrescentar que, selado o "acordo", as contas continuaram a ser apresentadas todos os fins de mês, como sempre seria feito sem o "acordo". Só que eu já não as conferia. O que ocorria é que o Pinto me trazia um problema e três soluções. E eu apenas tinha que escolher qual delas preferia, uma vez que a escolha cabia ao comandante de Companhia. Na maior parte das vezes fi-lo sempre com o aconselhamento do Pinto. Uma garantia de que jamais prescindiria.
Tenho perfeita consciência da sorte que tive neste campo, depois da menor sorte em ver-me com 23 anos de idade a comandar uma Companhia de Caçadores. Algo que me honra mas que doeu.
 
- Terceiro episódio.
Um dia fui de férias. Na despedida do Pinto este disse-me: "Se passar pela 5ª Rep dê cumprimentos meus ao Major Fulano".
E eu fui.
Cheguei, tratei do que lá me levava e terminei com os cumprimentos do Pinto.
Garanto que o Major quase se colocou em sentido:
- "Você tem lá o 1º Sargento Manuel António Pinto?".
Sim, é o 1º Sargento da Companhia.
- "Então fique sabendo que você tem, provavelmente, o melhor 1º Sargento do Exército Português!" (Ipsis verbis)
 
O que escrevo é uma homenagem.
Sentida e justa.
E, já agora, meu Amigo Manuel António Pinto é tempo de amenizar essa tremenda humildade com que sempre mascarou o seu saber, arte e, acima de tudo, carácter.
 
Bem-haja.
O meu abraço apertado quanto a gratidão e o reconhecimento que lhe devo.
 
Pedro Cabrita
ex-Capitão Miliciano
ex-Comandante da C.Caç. 3441

terça-feira, 1 de outubro de 2013

MABUBAS - Primeiras impressões

A estafa daquela quase interminável viagem que nos trouxe dos confins das terras do fim do mundo até às delícias da civilização deixou as suas marcas. Meio atordoado e fisicamente combalido, nem me dei conta, no imediato, das características do lugar onde fomos largados. Em boa verdade, nem pensei nisso, pelo menos que me recorde. Ao abandonar a viatura, após percorridos mil e tantos quilómetros com escassas paragens pelo caminho, apenas ansiava por esticar as pernas e procurar a camarata na mira de um duche frio que me refrescasse os miolos, retirasse os músculos entorpecidos da sua letargia e me libertasse daquela sensação de sujidade pegajosa acumulada pelos longos dias da viagem; descobrir as Mabubas era coisa que, no momento, não me preocupou e nem uma pontinha de curiosidade me levou a pensar no assunto. Lancei-me à cata das minhas tralhas algures perdidas e esborrachadas no meio das demais e olhei à volta à procura do quartel.
Não obstante o reboliço da chegada, deu para perceber que nada à volta se parecia com instalações militares. Considerando as casas circundantes, assumi que estaríamos no meio da povoação, uma qualquer localidade, um pequeno lugarejo que, como tantos outros, na então áfrica portuguesa, nascera ao sabor das cruas exigências de ocupação secular daquele imenso território. O quartel, esse, certamente estaria por ali. Provavelmente, deduzi, para além das traseiras do edifício do comando postado à nossa frente.
Mas não era assim. Dali a um nada descobriria que o dormitório dos furriéis, pelo menos esse, estava localizado num edifício comprido, já nos limites do casario principal mas visivelmente não enquadrado em qualquer perímetro que pudesse ser considerado quartel ou similar. É que, nem sequer tinha aspecto que se parecesse com o que quer que fosse militar. Não se viam muros, guarnições, postos de sentinela ou outros sinais que fizessem lembrar preocupações de defesa. Embora fosse suposto estarmos em guerra, não se viam sinais disso.
Abandonámos o asfalto da rua principal espremida entre uma correnteza de casas, descemos por outra, agora empedrada e metemos por um caminho de terra e piso irregular que, atravessando o campo, levava ao edifício. A paisagem envolvente, coberta de vegetação meio ressequida (a época das chuvas passara havia tempo) acompanhava as irregularidades do terreno. No outro lado do caminho uma enorme mangueira, carregadinha de pequenos mangos ainda verdes, cobria toda a parte frontal da entrada do edifício enquanto, ao longe, sobressaía a silhueta majestática e caricatural dos imbondeiros, cujas galhas, despidas e estranhas, pareciam irregularmente recortadas no intenso azul do céu. Definitivamente, nada daquilo se parecia com a Neriquinha; não havia pó, as planuras imensas desapareceram e nem a irregularidade do caminho chegava a constituir um incómodo. Na verdade, por ali tudo era novidade.
O edifício, que a partir de então passou a acomodar o grupo de sargentos da companhia, revelou-se uma agradável surpresa. Embora por fora se parecesse com um barracão ou um qualquer armazém, o seu interior era diferente, mas para melhor. Um espaçoso hall, à entrada, dava acesso a um corredor longitudinal que, correndo pelo centro do edifício distribuía à direita e à esquerda quartos espaçosos, cada um comportando duas divisões dando uma imagem singela de suíte. Duas camas, num lado, definiam a zona de dormir enquanto o outro simbolizava uma espécie de sala de estar. As camas, essas, eram iguais às da Neriquinha, mas assumi desde logo que estariam limpas de percevejos embora a rede mosquiteira que selava as janelas garantisse que os mosquitos não eram diferentes, pelo menos no que toca ao seu afã de infernizar quem se expusesse às suas picadas vorazes. Um luxo! Pensei eu provavelmente condicionado pela recordação da precariedade da nossa camarata nas terras do Cuando Cubango.
Despi o camuflado e deixei-o cair por ali. Não obstante já fragilizado e coçado pelo uso intenso de dezoito meses de mato, pareceu ter enrijado. Ganhou textura em consequência da absorção de pó amassado com o suor daqueles quatro dias de viagem. Depois, peguei na toalha, lancei mão da lâmina de barbear e do sabonete e dirigi-me às instalações sanitárias localizadas um pouco mais à frente, no outro lado do corredor.
Passei sabonete várias vezes e perdi a noção do tempo saboreando a frescura revigorante do jorro forte do duche até sentir as pontas dos dedos enrugadas. Postei-me à frente do espelho e desfiz a barba de cinco dias, com cuidado, num escanhoar meticuloso e regressei ao quarto. Estiquei-me sobre a cama deixando que uma doce elanguescência fosse tomando conta do meu corpo cansado.
Não sei quanto tempo por ali fiquei e nem tive consciência de ter adormecido. Se calhar a fome despertou-me do doce torpor. Qual reflexo condicionado, veio-me à memória o restaurante que vira quando iniciei a descida da rua a caminho do dormitório. Ou então, os últimos cinco dias a ração de combate começavam finalmente a fazer o seu efeito.
- Não! Pensei. Deve ser o relógio biológico a anunciar a hora da janta. Não é meu hábito deixar-me guiar pelas armadilhas imateriais do subconsciente.
Levantei-me, sem pressa. O lusco-fusco do fim de dia anunciava a noite que se aproximava. Vesti a melhor roupinha civil que arranjei, um bocado amarrotada pelos meses e meses que esteve encafuada no fundo da mala. Por sorte, naquela altura, usava-se bem justa e isso disfarçou as pregas da plissagem a que fora sujeita. Calcei o sapatinho preto, procurei companhia e em passo indolente, caminhámos em direcção ao restaurante.
Estrategicamente colocado no melhor sítio da rua principal à direita de quem desce, aquele restaurante pareceu-me o mais evidente sinal de civilização. Uma ampla esplanada, uma singela mas simpática sala de jantar e um balcão tipo snack-bar com bancos altos ao redor, anunciavam que a nossa vida começava a mudar para melhor. Tirar a barriga de misérias era coisa que ia começar já; descontando a compreensível falha de memória já queimada pelo tempo, apostaria que me devo ter alambazado com um grande bife com batatas fritas e ovo a cavalo. Era petisco com que sonhava frequentemente, especialmente quando, não havendo opção, o rancho na Neriquinha deixava muito a desejar.
Decididamente, os tempos de miséria chegavam ao fim e, como a seu tempo se verá, a coisa não se ficaria apenas pelos pecados da gula. Aquelas Mabubas que nos saíram em sorte prometiam uma nova vida. Ruas asfaltadas, casas, população civil e um restaurante eram amostras promissoras. Para já, tudo corria de feição à mesa daquele restaurante.