terça-feira, 6 de maio de 2014

MATARAM O BACALHAU

Ensaiei diversos títulos e nem sei se este será o mais adequado. O facto é que o Bacalhau morreu. Como diz o brasileiro, morreu de morte matada, com estrondo, de tal forma que foi notícia de primeira página nos jornais de ontem e de hoje.
É verdade meus amigos, o Virgílio Cabral, o nosso Bacalhau, depois de ter vivido a vida da forma que escolheu e que quis, foi brutalmente assassinado. Depois de uma vida ao volante de um táxi pelas noites lisboetas, acabou por morrer em sua casa, apunhalado, sem que se saiba bem porquê e por quem.
Pode censurar-se o seu comportamento e a forma como levava a vida. Mas era um dos nossos e como tal será sempre recordado, sem recriminações.
Ficarão para a história, certamente, todas as suas bizarrias, o seu desenrascanço, a imaginação fértil que o levava a desencantar as formas mais inesperadas de arranjar uns dinheiros extra, sempre com umas pinceladas de desonestidade quase inofensiva de que, sem pudor, fazia alarde.
O Bacalhau nunca fez mal a ninguém, que se saiba. Estou capaz de apostar que não merecia sair deste mundo sem sequer se despedir. Não deixaram. Não lhe deram hipótese.
Descansa em paz.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

A AÇUCAREIRA

Ali bem pertinho, um par de quilómetros a oeste do Caxito, a Fazenda Tentativa espraiava-se pelas margens férteis do Rio Dande que se passeava preguiçoso por entre hectares e hectares de plantações de cana-de-açúcar e palmeiras dendezeiras. A fazenda era propriedade da Companhia do Açúcar de Angola, que detinha ainda fazendas mais a sul, mais propriamente no Cubal e no Dombe Grande, verdadeiro império empresarial da família Sousa Lara que produzia de tudo um pouco salientando-se o açúcar de que era a maior produtora de todo o território e ainda sisal, óleo de palma e coconote entre outras coisas.
Inicialmente, eu não fazia a mínima ideia do que aquela fazenda produzia. Havíamos por lá passado na etapa final da viagem que nos trouxe das longínquas Terras-do-Fim-do-Mundo mas, na altura, nem dei pela sua existência. Albergava a sede do batalhão, o que significava proximidade do comandante e isso era o suficiente para eu querer distância dali. Das vezes que por lá passei, por imperativos de serviço, dirigi-me sempre à secretaria, o mais rápido possível e zarpava antes de qualquer encontro imediato. Ou o homem saía pouco do círculo restrito do seu gabinete ou tive sorte. O facto é que nunca dei de caras com tal pessoa. Ainda hoje recordo, numa revolta mitigada e quase esbatida pelo tempo, o raspanete imerecido que me deu em plena pista empoeirada da Neriquinha, enquanto aguardava o momento de subir para o Alouette que me levaria até às profundezas da savana para mais uma desgastante operação militar contra um inimigo que não quis medir forças connosco. Enfim, reminiscências agora temperadas pela riqueza exuberante de uma fazenda, ali quase às portas do bulício citadino de uma aprazível Luanda.
Atrevo-me a afirmar que, para mim, a Tentativa tinha uma aura especial. Tenho a certeza de que a via de forma diferente do resto do pessoal. Da baga do dendém, confesso que, até então, nunca tal tinha visto ou imaginado, mas a plantação e cultivo da cana-de-açúcar era algo que fazia parte da minha existência. Aprendi a distinguir as suas variedades, sabia escolher a mais sumarenta e mais doce e não resistia ao seu suco delicioso que saboreava chupando‑o gulosamente até não restar gota.
Nasci e cresci na Madeira absorvendo as preocupações do meu pai numa luta permanente contra as pragas que dizimavam a plantação, exigindo cuidados que nem se extinguiam na azáfama anual da colheita e seu transporte para o engenho que a transformava em branco açúcar, em espesso e escuro mel, dali saindo ainda uma aguardente explosiva que, para ser bebida, tinha ser diluída e amaciada. Esta agro-indústria, a par com a produção de vinho, representava então, umas das maiores riquezas da ilha que me viu nascer.
Por tudo isto, entende-se a compreensível atenção que eu dispensava a todo o processo, já que a única semelhança encontrada ficava-se mesmo pelo aspecto da cana; tudo o mais era diferente. Habituado à plantação alinhada em regos paralelos desenhados nas nesgas de terra empoleiradas nos socalcos das encostas madeirenses era, pelo menos para mim, uma espectacular novidade a enormidade dos canaviais espalhados pelas ricas planuras da fazenda, dessedentando-se no generoso caudal do Dande que, uma vez domado por uma ou duas represas, deixava que as águas circulassem por canais de rega estrategicamente construídos por entre os terrenos da plantação.
Ali a cana crescia livremente formando um matagal intransponível que apenas desaparecia na altura da colheita, feita a golpes de cutelo por um exército de milhares de trabalhadores. Para além dos canaviais, que se avistavam da estrada, nunca me foi dado tomar consciência da sua real extensão e capacidade produtiva. Sabia, contudo, que a cana era transportada em pequenos vagões que rolavam por carris de ferro puxados por um tractor desde o local da colheita até à fábrica.
Constava que tinha vinte quilómetros quadrados de extensão, mas isso não me permitia ter a noção do seu significado. Apenas tendo em consideração que a fábrica laborava durante todo o ano e que o ciclo de crescimento da cana era em média de doze meses, conseguia imaginar a enormidade da extensão e da capacidade produtiva daquela fazenda à qual, a linha férrea conferia maior dimensão. Não sei se era assim, mas lembro-me que, na altura, juntando todos estes elementos, me pus a concluir que havia sempre cana em condições de colher, numa espécie de carrocel sem fim: à medida que ia sendo colhida, voltava a crescer ao ritmo da capacidade de laboração das prensas que incessantemente a espremiam.
Quando, finda a comissão, por ali passei na viagem de regresso a casa, lembro-me vagamente de ter deitado uma última olhadela aos canaviais que se estendiam desde a estrada. A folhagem da cana ondulava ao sabor da fraca brisa, quase pronta para nova safra como ciclicamente acontecia desde os recuados anos vinte, altura em que foi fundada a Companhia.
Sei que, após a independência, passaram a chamá-la de “A Açucareira”. Contudo, reza a história que, alguns anos volvidos, cessou toda a produção e todo o casario da fábrica incluindo os armazéns do açúcar, se transformou em ruinas.
Não sei o que lá se planta nos dias de hoje, mas o esqueleto de toda aquela riqueza ali permanece como um fantasma que, após a morte física, se obstina em não abandonar o mundo dos vivos.
Qual terá sido o paradeiro de toda a maquinaria pesada que equipava a fábrica? E os carris de ferro? Ainda se deixarão ver?
Bem, na verdade, nem quero saber.