Os milhentos
ditames que compunham as regras pelas quais, naquele tempo, qualquer militar se
devia pautar, eram uma preocupação permanente; um passo em falso, daqueles
susceptíveis de constituir infracção a um qualquer artigo do RDM, podia
transformar-se numa mão cheia de chatices, especialmente se a falta fosse
cometida na presença de um daqueles militares da treta que costumavam adejar
pelos corredores da burocracia militar. O desgraçado regulamento era tão
persecutório que quase se pode dizer ser impossível não cometer infracções; Infringi-lo
ou não era pura questão de sorte ou azar.
Libertos que
estávamos das agruras ostracizantes da Neriquinha, uma das possíveis infracções
que passou a ser minha preocupação frequente prendia-se com a eventualidade de,
na qualidade de graduado, poder ser punido em consequência de um eventual
acidente com uma viatura em que seguisse. É verdade, mesmo não estando ao
volante, o graduado que seguisse na viatura podia ser responsabilizado por uma
infracção ou aselhice do condutor.
Enquanto
andámos pelas picadas empoeiradas do Cuando Cubango, isso não era problema
porque, ali, ninguém tinha que se preocupar com o cumprimento das regras de
trânsito. Naquele imenso ermo, ter essa preocupação até seria ridículo: não havia
estradas, trânsito ninguém sabia o que era, cruzamentos eram apenas encontros
de caminhos que levavam a lugar nenhum e sinais de trânsito ou o que quer que
se pudesse aproximar das regras que preocupam quem conduz um automóvel eram
coisas de ficção. A liberdade era total e as viaturas, preparadas para andar
naqueles itinerários arenosos, circulavam por onde fosse preciso sem qualquer
problema. Naquele mar de areia e lama a grande preocupação era a de saber por
onde se andava, mas apenas para que não nos perdêssemos naquelas planuras
imensas ou para nos pouparmos à carga de trabalhos necessários ao desatascanço de uma viatura que o desconhecimento ou nabice do condutor levasse para terreno
menos consistente.
Agora, longe
das picadas arenosas rolando por estradas asfaltadas e sem buracos, a condução
era muito mais fácil, cómoda e quase sem riscos. Contudo, para condutores que
se habituaram por demasiado tempo a ignorar o código da estrada e a não terem
de repartir os caminhos por onde andavam com automóveis de toda a espécie, as
preocupações eram muitas tanto para os condutores como para os graduados que, por
inerência do posto, chefiavam a viatura em que seguissem. Pela parte que me
toca, passei, sem motivo, por algumas dores de barriga, pelo menos até começar
a ganhar confiança no homem que tinha a missão de conduzir.
Nas Mabubas,
fui incumbido de gerir a cantina e isso implicava idas frequentes a Luanda para
a necessária reposição de stocks, garantindo que, pelo menos, tabaco e cerveja
nunca faltassem. As primeiras viagens foram, pelo menos para mim, exercícios de
habituação. Primeiro estranhei a ausência dos saltos e ressaltos a que me
habituara nos percursos esburacados das picadas sinuosas; depois fui-me
familiarizando com a estrada pouco movimentada que, após cerca de uma hora de
caminho, ali, logo a seguir ao Cacuaco, onde um bando de flamingos em lento
movimento, pintando toda a praia de um cor-de-rosa suave, dava lugar ao
trânsito citadino da então cosmopolita Luanda.
Era aí que
começavam as minhas preocupações. Embora o condutor parecesse dar bem conta do
recado, eu interferia na condução. Ainda que a contra gosto, avisava, alertava,
carregava num pedal de travão imaginário sempre que a distância do carro da
frente parecia encurtar.
- Olha que o
gajo vai virar! Cuidado que vai
travar! Olha aquele ali que vem para cima de nós!
O condutor,
esse, nada dizia, mais parecendo conhecer o caminho que, por aquelas alturas me era
totalmente desconhecido. Depois, era a estrada de Catete, naquele seu troço
inicial que levava ao Grafanil. O limite de velocidade quedava-se pelos
sessenta quilómetros por hora e a porcaria do velocímetro do Unimog indicava a
velocidade em milhas. Afanava-me a fazer contas de cabeça, convertendo milhas
em metros, até perceber que tudo estaria bem se o ponteiro não passasse além de
certo ponto que, calculara eu, corresponderia, mais ou menos, à velocidade
máxima permitida: sermos apanhados pela polícia militar em excesso de
velocidade, mesmo que apenas por alguns metros, podia fazer nascer um processo
disciplinar, cuja pena seria mais gravosa para mim do que para o condutor. Consequentemente, eu insistia:
- Oh pá! Vai
mais devagar! Olha que estes gajos da PM são todos uns grandes filhos da puta.
A ansiedade
baixava assim que entrava à porta do Grafanil. Por ali andava-se devagar,
percorrendo cada um dos barracões da manutenção militar à procura dos produtos
necessários: bebidas alcoólicas num, refrigerantes noutro, enlatados num
terceiro, depois o das bolachas, o dos produtos de higiene, enfim um
supermercado repartido por armazéns espalhados por aquele vasto recinto. Depois
de tudo carregado, recomeçava a saga, agora em sentido inverso até nos
libertarmos finalmente do trânsito citadino. Uma paragem numa das cervejarias
do Cacuaco para matar a sede e saborear uns camarões era suficiente para
descomprimir. Depois disso, o caminho de volta a casa era uma bênção; o trânsito
era pouco, a estrada não era má e os condutores eram de confiança.
Com o tempo,
acabei por me habituar, ou porque as ruas de Luanda se tornaram familiares ou
porque o trânsito era agora encarado como rotina normal, ou ainda porque,
afinal, concluí que não valia a pena tanta preocupação. Acidentes, acontecem,
por muitos cuidados que se tenham; na verdade, nunca tivemos qualquer percalço,
nenhum acidente veio conspurcar aquele pacífico fim de comissão às portas de
Luanda.