Memórias das aventuras e desventuras de 140 militares que, em Novembro de 1971, armados de G3, foram largados num ermo algures no meio das remotas savanas das terras-do-fim-do-mundo nos confins de Angola
sábado, 8 de novembro de 2014
Barragem das MABUBAS, 2014
Estas fotografias, são do actual estado da Barragem das Mabubas, recuperada pelos chineses e em cujas margens vão ser implantados alguns complexos turísticos. 2014.
sábado, 1 de novembro de 2014
Caçada nocturna
Já por diversas vezes me referi à riqueza da fauna que me
habituei a ver deambular pelas imensas planuras do Cuando Cubango. A flora era
escassa, o que se compreende; no meio daquele quase deserto matizado de chanas
alagadiças, pouca coisa medrava. Contudo, era um verdadeiro paraíso para os
animais de grande porte, a julgar pela quantidade e variedade que por ali havia.
Aquele bocado de savana, definido pela faixa que vai do Rio Cuando até à chanas
do Utembo, terreno maninho e semi-pantanoso que aprendi a conhecer por
corresponder à área de actuação da companhia, era habitado por manadas de
búfalos, de songues, de gungas, de guelengues e outras espécies onde se contavam
as elegantes palancas, os simpáticos antílopes de várias espécies, os rezingões
porcos do mato sempre de rabo no ar como se uma antena se tratasse e até
coelhos, para só falar de alguns.
Bastava percorrer alguns quilómetros que mais cedo ou tarde
os encontraríamos, especialmente nas imediações das chanas húmidas onde a erva
permanecia verde e fresca mesmo quando a ausência de chuva transformava tudo em
volta num imenso mar de palha seca. Assim, para compensar o magro orçamento que
não permitia refeições de bifes de carne de vaca, faziam-se incursões
periódicas à caça de carne fresca. Abatiam-se dois ou três animais que a
perícia do Ferreira reduzia a bifes, bastando acrescentar-lhes os temperos e
correspondente acompanhamento para o Morais compor o rancho, compensando assim
a insuficiência de verba. Mas isso era no Cuando Cubango onde a pasmaceira
reinante por falta do que fazer, tornava interessante palmilhar a imensa savana
à caça da melhor peça. A gunga, por
exemplo, espécie de antílope de grande porte, permitia fazer uns bifes que em
nada ficavam a dever à melhor vitela.
Mas, nas Mabubas, nunca poderia ser assim. Desde logo porque
a variedade não era tanta e o acidentado do terreno não motivava ninguém a
aventuras de caça, não conseguindo ser alternativa à vida regrada que a
animação social ia propiciando. Havendo muito por onde entreter o tempo a sedentarização
ganhou espaço, os dias de pasmo deram lugar a uma intensa vida social e a
aventura deixou de interessar. Mas, ainda assim, sabia-se que a mata que
bordejava a imensa albufeira da barragem albergava algumas famílias de pacaças,
bovídeo corpulento cuja carne se dizia não ser desagradável.
Ora, pacaça era bicho que ninguém da companhia alguma vez
tinha visto e isso espicaçou a curiosidade. Isso e provavelmente as recordações
das grandes aventuras em que se tornavam as idas à caça na grande savana de
onde viemos. A ajudar, tínhamos à carga um barco zebro, destinado ao
patrulhamento da barragem, com dimensão suficiente para transportar uma
equipa de caça e trazer na volta os bichos que se deixassem apanhar.
Assim sendo, certa noite, reuniu-se um pequeno grupo
decidido a aventurar-se na escuridão dos meandros da albufeira e que, tanto
quanto me lembro, integrava o Capitão, o Gabriel - que para além do seu mais
que demonstrado gosto por aquele tipo de aventuras era o responsável pela
manutenção do zebro – e ainda, porque era preciso alguém que conhecesse os
segredos daquela imensidão de água, o Sr. Tomé responsável pela barragem e o
seu ajudante, o Gasolina, negro corpulento que conhecia tudo por ali.
Carregaram uma bateria a que ligaram firmemente um projector
e lançaram-se à aventura fazendo o zebro deslizar devagar rasgando as águas
adormecidas da barragem. O Gabriel levava a G3 aperrada, o Gasolina segurava a
bateria garantindo alimentação permanente do farolim com o qual o Sr. Tomé ia
varrendo a mata circundante, esquadrinhando cada recanto com o foco luminoso do
improvisado projector. Não demorou muito até que a luz intensa, perfurando a
noite, descobrisse os olhos brilhantes de duas pacaças que encadeadas pela
intensidade da luz nem se moveram tornando-se em alvo fácil que dois tiros
certeiros deitaram ao chão.
O problema agora era carregar os animais corpulentos no
Zebro, coisa que não parecia ser fácil. Apontaram à margem e aceleram a fundo
para que a proa do barco galgasse a margem rampante na esperança de que ali se
imobilizasse. O zebro ganhou velocidade seguindo o túnel luminoso do farolim e
exactamente quando se aproximava da margem, embateu violentamente num tronco
submerso escondido na escuridão das águas, logo abaixo da superfície. O barco
estacou repentinamente travado pelo inesperado obstáculo. Abanou violentamente desequilibrando
os passageiros que, agarrando-se conforme puderam, evitaram cair à água.
Todos, excepto o Gasolina que, talvez entendendo que era
importante não largar a bateria, a agarrou firmemente ficando sem hipótese de
se segurar. Desequilibrou-se e caiu borda fora levando consigo a bateria cujo
peso o empurrou para o fundo da barragem. Momentaneamente, no meio da
escuridão, apenas deram pela falta do Negro sem que, no meio da confusão, alguém
soubesse exactamente onde caíra. Fizeram incidir o halo de Luz do projector
sobre a superfície das águas abruptamente tiradas da sua quietude, esperando
que a todo o instante emergisse. Mas, pelos vistos, não foi isso que aconteceu
embora o farolim continuasse aceso.
Foi então que o Sr. Tomé, como que inspirado na lenda de
Ariadne, trazendo para realidade a fantasia mitológica, seguiu o fio que
desaparecia nas escuras águas. Debruçou-se sobre a borda, esticou os braços, agarrou o seu ajudante pelo cabelo e puxou-o vigorosamente para a
superfície. O Gasolina emergiu, sorvendo sofregamente o ar e, nunca largando a
bateria, esperou que o ajudassem a subir para bordo, escorrendo água e arengando qualquer coisa à
laia de justificação.
Com muito custo e permanente adornar do barco, carregaram as duas pacaças de cujo destino pouco recordo. Sei apenas que uma foi direitinha para o refeitório enquanto a outra foi transformada em petisco. Creio que, nas Mabubas, toda a gente comeu um bocado do churrasco em que se transformou aquela massa enorme de carne fresca.
Subscrever:
Mensagens (Atom)