terça-feira, 1 de setembro de 2015

Os caminhos da savana II

É mais um pequeno acrescento a tudo o que escrevi sobre as capacidades de orientação das gentes que habitam uma das zonas remotas do território angolano. E estamos a falar de um povo que, pelo menos naqueles tempos, tendo hábitos de vida bastante afastados do que se poderia designar por civilização, era considerado como integrantes da mais atrasada de todas as etnias que povoavam aquele imenso território, atraso que, como é bom de ver, era medido a partir da comparação com o padrão de vida dito civilizado, citadino ou, se se quiser elevar a bitola, evoluído.
Só que, aquele povo, para levar a sua vida, não necessitava de nenhuma das vantagens ou alegadas mordomias do mundo moderno. Pautavam o seu modus vivendi por hábitos ancestrais, tinham pavor a quase tudo o que se assemelhasse a uma qualquer maquineta, eram capazes de considerar o médico analfabeto quando comparado com a imensa sabedoria do curandeiro da aldeia e as suas superstições quase que condicionavam tudo o que faziam ou pensavam. Por exemplo, uma máquina fotográfica era uma invenção do demónio para lhes roubar a alma e um rádio bem podia ser o portal que o dito utilizava para, desde as profundezas do inferno, enviar as suas ameaças aos que por cá andassem. Feitiçarias, enfim.
Pois! Podiam ser tudo isso, mas eram doutores relativamente ao que era preciso conhecer para tirar partido do muito pouco que aquela terra estéril e areenta tinha para dar. Em tudo o que tivesse a ver com isso a sua sabedoria era imensa, especialmente quando comparada com a nossa total ignorância sobre tais assuntos. Por ali, a nossa vasta cultura era de pouca serventia, especialmente quando o que importava era saber por onde andar, quer estejamos a falar do terreno que se pisava quer da direcção a tomar para chegar a algum lado.
O episódio passou-se comigo na companhia de outros três em quem o juízo e as cautelas pareciam interessar pouco. E surgiu na sequência de uma proposta feita por um dos fuzileiros do destacamento de marinha estacionado no Rivungo. Ainda não decorrera um mês desde que ali chegáramos e para nós, imberbes principiantes, os mistérios da savana ainda eram exactamente isso; mistérios, desconhecidos e insondáveis. Mas para o pessoal da Marinha, que já ali estava há algum tempo, não seria bem assim. O marinheiro, de quem infelizmente não consigo recordar o nome, veio ter connosco e propôs uma caçada. Naquela altura do ano, as chanas do Uefo costumavam apresentar-se como uma extensa pastagem verdejante e seria certamente fácil encontrar, algures no meio das ervas, uma vítima a condizer. Era só escolher.
O Alferes autorizou, a escolha da equipa reuniu consenso, aperraram-se armas, embainharam-se as facas de mato, atestou-se o depósito do Unimog e, quando as três já se aproximavam das quatro da matina, eu, o Silva, o homem da marinha e o condutor Figueiredo, mais conhecido por Comandos e que parecia só ter medo de agulhas e injecções, largámos em direcção à picada sinuosa que se dirigia ao Caxoxo, pequeno Kimbo localizado nas imediações das margens do Uefo, aonde chegámos uma hora depois, já o sol, que por ali costuma ser madrugador, despontava por entre as árvores. Naquelas paragens, às cinco da manhã já é dia claro e pelas seis o calor já frita miolos.
Os homens da PSP, ali destacados, indicaram-nos um guia de confiança, deram-nos umas dicas, desejaram boa sorte e partimos, sem pressa, que a picada, ora de areia solta ora lamacenta, não ajudava, em direcção à grande chana do rio de fraco caudal que serpenteia em direcção a sul.
Avançámos, ao sabor dos meandros da chana, procurando evitar as zonas mais alagadas, perscrutando cada recanto da mata e detendo o olhar em cada tufo de capim, tentando adivinhar onde estariam as manadas de palancas que, na nossa ignorância de principiantes, se considerava certo andarem por ali.
Mas nem um bicho se nos apresentou, nada mesmo. Naquele extenso prado verdejante, de beleza feérica, longe de tudo e sem nada que pudesse perturbar a paz circundante ou assustar o que quer que fosse, não se via vivalma.
Continuámos para sul, desflorando aquela paisagem virgem, confiantes de que o guia nos saberia trazer de volta e na espectativa de que, em qualquer dos recantos caprichosamente recortados na paisagem, surgisse o que quer que fosse que justificasse a viagem. De repente, quando, já desanimados, nos preparávamos par regressar, surgiu o vulto amarelo ocre de um antílope, um nunce como era conhecido, mordiscando placidamente um tufo de erva, quase passando despercebido na linha que separa o descampado da mata que bordeja a chana.
Num primeiro momento não se apercebeu da nossa aproximação, até que provavelmente alertado pelo ronronar do motor que o Comandos procurava controlar com uma aproximação cautelosa, o bicho deu um pinote e encetou uma cavalgada desenfreada em direcção ao interior da mata ao mesmo tempo que o condutor, acelerando a fundo, lhe seguia no encalço, procurando competir com a corrida de um animal que ziguezagueando por entre o arvoredo, saltando por cima de cada obstáculo, se afanava em fugir à besta roncante que lhe seguia na peugada.
O Comandos, sacando da sua perícia, exigiu do Unimog tudo o que ele tinha para dar e lançou-se numa louca correria mata adentro, derrubando árvores, contornado as de maior porte, evitando num último momento uma depressão no terreno que, escondida pelo capim, surgira pela frente, perseguindo o animal até que, depois de dois saltos impelidos pelas ágeis patas traseiras, o nunce despareceu por entre a vegetação.
Parámos. Esfreguei as mãos doridas do esforço feito para me segurar ao banco, retomámos a compostura, conferenciámos e decidiu-se que o melhor era regressar, ainda que de mãos a abanar. Olhámos em volta. A mata circundante era incaracterística, sem pontos de referência. A chana do Uefo desaparecera e depois daquela correria sem destino ninguém sabia para que lado ficava o norte e menos ainda que direcção seguir.
Era exactamente para isso que se precisava do guia e o homem cumpriu plenamente a sua função. Sentou-se sobre a parte superior do encosto dos bancos, pés nus, sujos e gretados sobre o assento, esticou o braço para a frente indicando o caminho a tomar e, sem dizer palavra, esperou que se iniciasse a marcha. O Comandos arrancou, seguindo a direcção apontada pelo braço do homem, conduzindo a viatura a corta mato, sem pressas, desviando-se das árvores e contornando a vegetação mais espessa. Sempre que, um obstáculo obrigava a um desvio de maior amplitude, o braço do guia, parecendo dotado de uma qualquer agulha magnética, movia-se para a esquerda ou para a direita, corrigindo o rumo, como se perseguisse um ponto invisível, no meio do arvoredo.
Seguimos assim, por longo tempo, confiando apenas no braço estendido do guia. Por mim, interrogava-me seriamente se seria aquele o caminho certo. As árvores pareciam ser sempre as mesmas, a vegetação rasteira à nossa frente, uma repetição da que se acabara de pisar e aquela árvore, um pouco mais frondosa que as demais, não era diferente da que se tinha contornado um quarto de hora antes. Cheguei a pensar que seguíamos em sentido oposto ao que eu pressupunha ser o correcto, para de seguida, duvidando da certeza do guia, imaginá-lo um elemento do inimigo a levar-nos em direcção a uma qualquer emboscada. Contudo, se era por ali que o guia apontava, era por ali que se seguia, até porque opção diferente não havia.
Finalmente, depois de tanto ziguezague e sem nunca se divisar um horizonte, logo ali, a seguir a uma espécie de moita mais espessa, como se surgisse do nada, a picada desenhou-se por entre o capim para, cinco minutos depois, após uma ligeira depressão, se divisar claramente as palhotas do Caxoxo.
Não sei como, mas o homem trouxe-nos direitinhos ao ponto de partida. Ou conhecia cada árvore daquela mata imensa ou então memorizou mentalmente o percurso feito na ida para, numa espécie de recriação da lenda de Ariadne, nos trazer de volta seguindo o fio criteriosamente gravado na sua memória.
Na altura, não me ocorreu outra explicação.