domingo, 1 de fevereiro de 2015

O adeus às Mabubas - Rendição II

Mais de um mês decorrera desde a festa comemorativa dos dois anos de permanência em Angola. A nossa missão chegara ao fim, mas ninguém pareceu impacientar-se com o “mata-bicho”, epíteto então utilizado para designar o excesso de tempo sobre os vinte e quatro meses da praxe. Mas, como não podia deixar de ser, chegou a notícia da rendição. Chegou, sem alaridos, sem ansiedade, sem pressas e ninguém exultou com a novidade. Nada aconteceu que se parecesse com a loucura desencadeada na Neriquinha por notícia semelhante.
Com efeito, quando o primeiro zumzum começou a circular, ninguém pareceu entusiasmado e o primeiro comentário não passou de um simples:
- Ei, pessoal! Parece que nos vêm render p’ra semana.
A reacção geral pareceu-me genericamente destituída de emoção, como se a coisa não fosse notícia importante. Do que recordo, não foi além da displicente interrogativa:
- Ah é? Já não era sem tempo.
Contudo, não obstante aqueles últimos oito meses da nossa missão em África tivessem decorrido como se do descanso do guerreiro se tratasse e todos se sentissem bem naquele agradável local, o anúncio não deixou de ser arauto de boa nova. A verdade é que, por muito aprazível que fosse, as Mabubas não eram a nossa terra. A proximidade do fim da comissão, festejada com pompa no mês anterior, espicaçara as saudades mantidas em suspenso ao longo daqueles infindáveis dois anos. O desejo incontido de abraçar família e amigos que, lá longe, no outro lado do oceano, nos esperavam com natural impaciência, foi ganhando intensidade. Dois anos é muito tempo especialmente se tivermos em consideração que, até ao momento em que nos vestiram a farda, uma grande parte daqueles homens nunca se afastara da família mais de um par de dias seguidos.
Como sempre, a notícia veio singela, sem pormenores. Seríamos rendidos antes do Natal embora nada fosse dito sobre o dia do regresso a casa, ao nosso Portugal pequenino ali carinhosamente apelidado de “puto”. Mas isso não pareceu preocupar a malta. A partir desse dia, passaríamos a estar em Luanda, de papo para o ar, sem operações militares ou quartos de sentinela, apenas aguardando, na grande cidade, o momento do regresso.
Chegaram finalmente aqueles que nos foram render. Foi numa segunda-feira, quando faltava apenas uma escassa semana para o Natal daquele ano de 1973. Não eram maçaricos. Vinham suados, sujos e com ar cansado a denunciar a longa viagem que os trouxera para ali. Vinham dos confins da savana, fartos de calcorrear picadas arenosas e sofrer na pela as agruras do clima e os duros traumas do isolamento hostil passado numa base militar plantada no meio de coisa nenhuma.
A história repetia-se. Sete meses antes éramos nós a aportar às Mabubas, também numa segunda-feira, resgatados às areias escaldantes do Cuando-Cubango. A companhia que agora nos rendia, pertencente ao Batalhão de Caçadores 4611, passou pelo mesmo mas no outro lado daquele bocado das terras do fim do mundo. Nós, num lado, calcorreando as margens do Rio Cuando, do Cúbia e do Uefo, eles no outro extremo, num ermo com centro em M’Pupa nas margens do Rio Cuito, bastante lá para baixo, um pouco antes de este misturar as suas águas com as do Rio Cubango para juntos se perderem, mais abaixo, no grande delta do Okavango. Parece que as Mabubas haviam sido eleitas pelas hierarquias como local de recobro de militares resgatados à grande savana.
O dia da rendição decorreu sem grandes alaridos, sem pressas ou ansiedades. Não houve praxes que é coisa que só se faz a maçaricos e nada havia para contar que interessasse a quem vinha prenhe de histórias rocambolescas. A passagem do testemunho foi feita naturalmente por gente já experimentada e conhecedora dos correspondentes preceitos protocolares e, em boa verdade, o que havia a entregar não era muito. Quer o depósito de géneros quer a cantina tinham stock reduzido de secos e molhados já que a proximidade dos fornecedores dispensava armazenagens excessivas. É que, deste lado, porque pertinho da civilização, as faltas eram facilmente supridas. Lá em baixo, no meio daquele deserto arenoso, era necessário garantir um stock de segurança; o fornecedor mais perto estava a dias de distância, a viagem era longa e atribulada e não era garantido que o reabastecimento mensal chegasse dentro dos horários.
Abraços, apertos de mão efusivos e um acenar de até sempre compuseram uma despedida muito distinta do nosso adeus à Neriquinha sete meses atrás. Cá como lá, deixaram-se amigos, diferentes mas igualmente amigos. Contudo, da paisagem lunar da Neriquinha todos tinham pressa de fugir e sem olhar para trás. Mas as Mabubas, um lugar aprazível, cheio de gente que nos tratou bem, não era propriamente um local de que se quisesse distância. Partimos felizes porque isso apenas significava que estava perto o regresso a casa; a nossa passagem pela guerra chegara definitivamente a seu termo.
Deixámos para os recém-chegados umas instalações condignas. Quartos arejadas, pintados de fresco e com cores garridas, decorados com alguma arte, cortinas a condizer e com a certeza de que, desta vez, não haveria necessidade de desinfestar as camas: mosquitos haveria sempre que esses não podem ser exterminados, mas percevejos, como os que nos infernizavam o sono na precária camarata da Neriquinha, era coisa que por ali nunca houve.